segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Um mundo à parte


Ah, a Borgonha. A Borgonha é outra história. Semana passada fui convidado para uma degustação dos vinhos da Domaine Jacques Prieur, propriedade (foto acima) localizada na nobre região francesa, que passam a ser importados no Brasil pela Casa do Porto. E é isso: os parâmetros de quem formou seu paladar experimentando produtos de qualquer outra parte – estou incluindo aí até mesmo as conterrâneas Bordeaux e Rhône – devem ser esquecidos quando temos essas garrafas pela frente. Os parâmetros sobre o que é caro e barato, também. Ali é um mundo à parte.

Todos os brancos da Borgonha são 100% chardonnay, indiscutivelmente os melhores do mundo com essa casta. Todos os tintos levam apenas pinot noir, igualmente os campeões dessa variedade. Por aí já começa a diferença com o restante da França, sobretudo Bordeaux, onde a regra são vinhos de “corte”, como se chama a mistura de diferentes uvas. Trabalhar com cortes é uma arte, mas é também uma vantagem. Como cada variedade amadurece numa época diferente, os produtores bordaleses alteram a porcentagem das castas empregadas no produto final ano a ano, aumentando a participação daquelas que foram colhidas nas melhores condições em cada safra. Na Borgonha isso não é possível. Se o ano foi ruim para pinot noir, é preciso fazer malabarismos para que a qualidade da bebida não se deteriore demais -- o que nem sempre dá certo, diga-se. Detalhe: a pinot noir é uma das castas mais sensíveis e caprichosas que existem.

Depois, o preço. A Borgonha é uma área relativamente pequena e composta por um mosaico de minúsculas vinícolas. Cada uma produz em quantidade bem limitada. Hoje existem os grandes negociantes que engarrafam as uvas de vários produtores associados, mas ainda assim com volumes mais ou menos modestos. Todo mundo sabe que a fórmula “muita demanda + pouca oferta = preços estratosféricos” é sempre verdadeira numa economia de mercado. O desejo e o glamour gerado por ícones como o Romanée-Conti só servem para elevar essa equação ao quadrado. E haja dinheiro. É por isso que na lista dos 100 melhores vinhos do mundo que a revista americana Wine Spectator publica anualmente (veja o último post, abaixo), a Borgonha nunca é destaque. Como a publicação considera o critério de custo/benefício, não poderia ser diferente.

Mas talvez a maior singularidade esteja na estrutura de aromas e sabores dos rótulos da Borgonha. É preciso educar os sentidos para aprender a apreciá-los. São vinhos para iniciados. Os tintos são delicados, misteriosos, exóticos, intrigantes. Ótimos para acompanhar caças pequenas, como aves, e muitos pratos à base de cogumelos. Os brancos podem ser minerais como os Chablis ou gloriosos e exuberantes como os Mersault e os Montrachet.

Chega um momento na estrada da enofilia em que o sujeito se depara com a Borgonha. Então um mundo inteiramente novo se abre. Um mundo de aromas e sabores inéditos. E geralmente um mundo com déficits igualmente inéditos na conta bancária.

Não há mundo perfeito, afinal.

Fecho com um breve parecer dos vinhos da Domaine Jacques Prieur.

Clos Mathilde 2004 – um branco simples e barato para os padrões da Borgonha: sai por 99 reais. É interessante para quem quiser começar a conhecer essa região sem gastar fortunas. Ótima acidez, como muitos brancos da Borgonha dessa safra.

Mersault Clos de Mazeray 2004 – aqui a coisa começa a fica séria. O preço vai acompanhando: essa garrafinha sai por 327 reais. Na escala da Borgonha, pode-se dizer que é um bom custo/benefício. Profusão de flores brancas no nariz e acidez vibrante na boca.

Puligny-Montrachet les Combettes 2003 – Cremoso, untuoso, amanteigado – mas falta um pouco de acidez, um defeito comum em brancos de uma safra tão quente.

Beaune Champs – Pimont 1999 (branco) – Com oito anos de vida, ainda está divino. A safra não foi fácil, mas o produtor, Martin Prieur, explicou-me que um rigoroso trabalho de manejo nos vinhedos garantiu esse resultado.

Beaune Champs – Pimont 2002 (tinto) – Safra excelente na Borgonha, que resultou num tinto de ótima qualidade mesmo a um preço não dos mais exorbitantes. Aromas complexos que lembram alguma coisa de derivado de petróleo (gás, querosene) ao fundo. Na frente, fruta e mais fruta. Uma delícia.

Clos de Vougeot 2001 – Um tinto grand cru, vai no mesmo diapasão do Beaune Champs, mas é ainda mais exótico. Só faltou um pouco de fruta. Vinho para comida.

Echezeaux grand cru 2001 – Ainda fechado, compacto, mas com enorme estrutura na boca. Deixe descansar na adega mais alguns aninhos para que esse rótulo possa mostrar tudo o que tem.

Musigny grand cru 2001 – Punho de ferro em luva de veludo – e põe veludo nisso. Um vinho encorpado, mas com taninos sedosos. Aromas que evocam terra molhada, cogumelo, petróleo, frutas e rosas. Um parque de diversões olfativo. Brincadeira sem fim para qualquer enófilo.

Montrachet Grand Cru 2001 – Esse branco é tão poderoso que foi servido por último, após todos os tintos, o que não é muito usual. Foi a atitude correta: ele fala mais alto que qualquer rótulo anterior. Flores brancas, frutas exóticas e cítricas, mel e trufas misturam-se e explodem no nariz. Um elixir inebriante que é preciso beber para crer. O retrogosto dura minutos – a sensação olfativa e gustativa não arrefece. Um sonho de vinho. A gente só cai da cama quando vê o preço da garrafa: essa jóia líquida custa a bagatela de 2 800 reais.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Top 100


E saiu a edição de 2007 dos top100 da Wine Spectator, a lista dos melhores vinhos do mundo na opinião da influente revista americana. Por melhores, entenda-se não apenas os produtos que ganharam as maiores notas, mas os que apresentaram equilíbrio entre pontuação, preço, disponibilidade no mercado americano (um critério que, portanto, não serve para o Brasil) e a capacidade de surpreender os críticos da publicação. Claro, qualquer ranking desse tipo está sujeito a muitas contestações. Há vinhos ali que eu não incluiria e outros tantos que simplesmente não consigo entender por que ficaram de fora do levantamento. Pode-se desconfiar que critérios econômicos pesaram mais do que os técnicos na escolha dos campeões. Pode-se desconfiar que depois de destacar uma vinícola num ano, a revista prefere dar a vez a outros produtores (produtores = anunciantes) na lista seguinte. Pode-se desconfiar que o gosto de algumas pessoas que trabalham lá talvez não seja tão apurado quanto deveria. Pode ser. Mas criticar a Wine Spectator é tarefa fácil, que muita gente faz – estou me incluindo aí. Desta vez quero chamar atenção para o lado positivo da lista.


Veja só: dos 100 rótulos destacados este ano, nada menos do que 59 custam 35 dólares ou menos – um preço bem razoável por aqui (cerca de R$ 60) e ainda mais razoável num mercado de maior poder aquisitivo, como os Estados Unidos. Alguns são verdadeiras pechinchas, como o Bodegas Borsao Garnacha Campo de Borja Tres Picos 2005, que sai por 12 dólares (20 reais), ou o Columbia Crest Merlot Columbia Valley Grand Estates 2004, por 11 dólares. Merece aplausos uma lista que destaca produtos acessíveis, não apenas os ícones de preço absurdo. Bem melhor assim.


Mesmo o grande campeão do ranking – o Clos des Papes Châteauneuf-du-Pape 2005 – tem um preço para lá de realista: 80 dólares. Sei que esse valor pode ser considerado alto para muita gente, mas estamos falando de um vinhaço, que flerta com a perfeição (mereceu 98 pontos). No geral, os dois produtos mais pontuados este ano foram o champanhe Krug Brut 1996 (99 pontos, 250 dólares) e o Valdicava Brunello di Montalcino Madonna del Piano Riserva 2001 (100 pontos, 175 dólares).


Infelizmente, esses são os preços nos Estados Unidos. Para saber quanto custa no Brasil, multiplique os valores pelo menos por três – e, não raro, por quatro ou cinco. A apreciação do real melhorou a vida dos brasileiros amantes de vinho, mas ainda assim pagamos caro demais por nossas garrafas.


A Wine Spectator tem dado enorme destaque para a apelação de Châteauneuf-du-Pape, no Vale do Rhône. Faz sentido, porque temos aí realmente alguns grandes vinhos franceses a preços menos salgados que em Bordeaux e muitíssimo menos do que na Borgonha. A gloriosa terra do Romanée-Conti, aliás, passou novamente apagada na lista dos top 100. Uma injustiça pela qualidade de seus rótulos. Uma justiça absoluta pelo preço exorbitante deles. Entre os 20 primeiros colocados, temos nada menos do que quatro Châteauneuf-du-Pape, incluindo o campeão.


Interpreto esta lista da seguinte forma: vale olhá-la com atenção para descobrir algumas novidades e bons custo/benefício. Nesse ponto, a grande quantidade de rótulos baratos é louvável. Mas os top 100 não são os melhores vinhos do mundo em matéria de qualidade absoluta – pelo menos não todos os integrantes da lista. E, como já escrevi diversas vezes, é sempre bom desconfiar das notas da Wine Spectator (e de qualquer crítico, em geral). Servem como referência, mas às vezes escorregam feio.

domingo, 11 de novembro de 2007

Terroir


Ao falar de vinhos com personalidade, como fiz no último texto, caio quase inevitavelmente num dos termos mais usados e abusados pelos enófilos, produtores, importadoras e críticos: “terroir”. Essa palavrinha francesa virou moda, ainda que nem todos compreendam bem seu significado. Tão logo o sujeito faz um curso-relâmpago de meia hora sobre vinhos, já sai falando que tal garrafa “expressa maravilhosamente o terroir de sua região”. Vinícolas de todas as partes estampam no contra-rótulo pérolas de marketing barato como “este produto provém de um terroir privilegiado”. E por aí vai. Mas o que quer dizer terroir, exatamente?

Para os vinicultores sérios, terroir é um termo complexo que abarca todas as condições físicas e naturais de um terreno específico e a forma como se dá a interação desses fatores com o homem. Piorou? Traduzindo: um terroir é a soma da composição geológica, a altitude e o ângulo de inclinação do terreno, a maneira como a luz do sol e os ventos incidem naquele pedaço particular de chão, a drenagem do solo, a média pluviométrica, as variações de temperatura e até mesmo os microorganismos que vivem ali, e como o homem aprendeu ao longo do tempo, geralmente na base da tentativa e erro, a plantar num determinado espaço o tipo de uva que mais vai se beneficiar desse conjunto de condições específicas. Como se vê, não é um conceito trivial. Tampouco é uma idéia que pode ser aplicada a gigantescos vinhedos comerciais, plantados em áreas enormes.

Existe muita controvérsia sobre esse termo. Qualquer enófilo também já ouviu falar dos “crus” da Borgonha e de Bordeaux. Os crus são exatamente isso, os terrenos únicos e privilegiados. Alguns produtores do Novo Mundo defendem que terroir é tão somente uma peça de marketing. O raciocínio deles tem lá sua lógica: as novas regiões vinícolas, como Califórnia, Austrália, África do Sul, Chile e Argentina aprenderam a produzir vinhos de incrível qualidade usando muita tecnologia e contratando os melhores especialistas e enólogos internacionais. Muitas vezes, os resultados são até melhores do que os obtidos na Europa – e os preços são menores. Acuado e vendo sua supremacia escorrer pelo ralo, o Velho Mundo saiu-se com essa de “vinhos de terroir” – por definição, um terroir é algo único, que não pode ser copiado por mais dinheiro que se tenha. É uma forma de criar uma vantagem competitiva que, em tese, não poderia ser imitada. Só que o negócio pegou mais do que o previsto e entrou de vez no imaginário dos consumidores. Assim, ao invés de brigar com os europeus, nove em cada dez produtores de qualquer parte do planeta preferiram simplesmente usar da mesma artimanha e dizer que estão num “terroir privilegiado”. Resultado: o conceito banalizou-se.

Mas afinal, terroir é apenas marketing? Ou é um fator real e decisivo para a qualidade dos vinhos? Não sou o dono da verdade, mas tenho uma opinião muito clara sobre isso com base em tudo o que já li e degustei, nas conversas com enólogos e especialistas e no que pude perceber nas vinícolas que visitei. Acho que, hoje, em 99% dos casos esse termo é usado de forma abusiva e enganadora. Mas acho também que existe o 1% absolutamente verdadeiro.

Antes de mais nada, convém deixar claro que não se trata de mágica ou milagre o fato de um determinado terreno originar vinhos únicos. Para entender o que estou dizendo, primeiro vamos despir essa idéia de seu glamour. A rigor, o conceito de terroir poderia se aplicar a qualquer planta, não apenas a parreirais centenários que se espalham entre castelos nas mais belas paisagens européias. Vamos deixar esse estereótipo romântico de lado e pensar em algo mais corriqueiro e simples – um laranjal, por exemplo. É fato que uma mesma variedade de laranja vai gerar frutos de doçura e acidez distintas dependendo de onde for plantada. Não teremos o mesmo resultado cultivando laranjas no calor da Bahia ou na região serrana de Santa Catarina, por exemplo. Agora imagine plantar uma mesma variedade de laranja no Brasil inteiro, de alto a baixo; em seguida, selecionar as áreas que, ao longo dos anos, consistentemente dão os frutos com as características desejadas, como maior doçura; e depois ainda fazer um trabalho dentro dessas áreas privilegiadas para selecionar os melhores pés e produzir clones dessas plantas, livrando-se das demais, e aprimorando as técnicas de cultivo. Chegaríamos a alguma coisa como “crus” de laranjal no Brasil. E aí, seria isso apenas marketing? Que nada. As laranjas dessas áreas certamente teriam qualidade muito superior aos frutos provenientes de qualquer outro pedaço de chão no país.

Foi mais ou menos isso que aconteceu ao longo dos séculos com os mais nobres vinhedos da Borgonha e de Bordeaux, e também com algumas outras áreas da Europa, incluindo o Piemonte, na Itália, e regiões de cultivo da uva branca riesling na Alsácia e na Alemanha. Dizem que uma das provas irrefutáveis da existência do terroir é beber lado a lado os riesling da Alsácia produzidos em Schlossberg e aqueles que saem da área contígua de Furstentum. São terrenos vizinhos, mas com composições de solo bem diferentes. Aí opera-se o milagre do terroir: vinhos feitos com técnicas absolutamente idênticas e a mesmíssima variedade de uva, ainda por cima plantadas a poucos metros de distância, têm características tão distintas que qualquer leigo percebe a diferença.

É por isso que alguns dos mais consagrados enólogos do mundo dizem que é possível fazer bons vinhos em muitos lugares, mas que vinhos realmente grandiosos e excepcionais saem apenas de certos terroirs abençoados. Vale lembrar, contudo, que o terroir por si só não é garantia de qualidade: um mau enólogo pode fazer uma zurrapa mesmo tendo o melhor vinhedo do mundo para trabalhar.

Claro, fala-se muita bobagem sobre terroir, o que atrapalha ainda mais a entender o real peso desse fator na qualidade final dos vinhos. Dizem, por exemplo, que os vinhos brancos da uva chardonnay da área de Chablis, também na Borgonha, devem seu incrível caráter mineral e a perfeita harmonização com ostras ao fato de o terreno ter sido um mar no passado, tanto que até hoje são encontradas conchas e fósseis de peixes em seu solo. Tudo isso é verdade, mas não há qualquer prova científica de que exista relação entre o casamento enogastronômico perfeito de Chablis com ostras e as conchas enterradas entre as raízes das parreiras. Será? No creo en brujas, pero que las hay, las hay...

Numa imperdível entrevista a Veja.com, Aubert de Villaine, responsável pelo mitológico Domaine de La Romanée-Conti (DRC) – indiscutivelmente o símbolo máximo do conceito de terroir em todo o mundo – explica: “terroir é a um pedaço de solo delimitado pelo homem, com certas condições climáticas, ideal para um certo tipo de vinho. É uma alquimia entre o homem e a natureza estabelecida pela história. Os monges começaram este trabalho, no século XI ou XII, ao delimitar os vinhedos da Borgonha e as uvas que seriam plantadas: a pinot noir, para os tintos, e a chardonnay para os brancos.” De Villaine lamenta a apropriação e uso indevido do termo. “Infelizmente a palavra terroir não tem copyright. E todo mundo usa. Mas terroir não é marketing. O conceito não pode ser usado por um vinhedo de 1000 hectares no Novo Mundo, nem mesmo no Languedoc, na França. A história é indispensável para quem quer aplicar este conceito em seu pedaço de terra. É preciso de tempo. Os vinhos de terroir são, na minha opinião, superiores a qualquer outro.”

Um vinhedo de apenas 18 000 metros quadrados, delimitado por um murinho de pedra (foto acima), o Romanée-Conti é a prova viva de que o terroir existe. Em nenhum outro lugar do planeta a uva pinot noir gera um vinho assim, não importa quanto se tente e quanto se invista em toda sorte de tecnologia (e muito já se tentou e já se investiu). Daí seu preço absurdo, de pelo menos R$ 10 mil por garrafa para uma safra recente de qualidade apenas mediana – e várias vezes mais para as safras antigas, raras e de grande qualidade. Os vinhos de terroir são os de maior personalidade, os mais fascinantes e os únicos realmente inimitáveis. Infelizmente, é por isso mesmo que os mais famosos deles, como o Romanée-Conti, estão entre as bebidas mais caras que já foram produzidas.

Existem vinhos de terroir baratos? Sim, sem dúvida. Mas não é fácil encontrá-los. A primeira coisa a fazer é riscar da lista todos os produtos mais simples das grandes vinícolas comerciais. É preciso garimpar entre pequenos produtores -- sobretudo franceses, italianos, alemães, espanhóis e portugueses -- cujas famílias dedicam-se por gerações e gerações a cultivar e produzir vinho no mesmo local. Então, quem sabe, seja possível descobrir alguma jóia escondida numa pequena bodega empoeirada. Quem tiver alguma dica, pode mandar para este blogueiro.

PS.: Já que eu vinha comparando vinhos com pessoas, não resisti a reproduzir mais este trecho da entrevista de Aubert de Villaine. “Com os anos de garrafa você perde alguma qualidade da juventude, a energia, e principalmente o aspecto mais frutado da bebida, mas ganha-se em sutileza e elegância. Os grandes vinhos são como uma jovem. Começam a exibir sua beleza aos 15 anos e precisam chegar pelo menos os 20 anos para atingir maior complexidade e maturidade.” Leia toda a entrevista aqui. E leia sobre a história do Romanée-Conti aqui. Tudo do Roberto Gerosa, para mim o texto mais elegante entre os jornalistas especializados em vinho do Brasil.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Questão de personalidade


Há pouco, brinquei com a comparação entre vinhos e pessoas (ver post “Outono na taça”, abaixo). Já que embarquei nessa, vou completar o serviço. O estalo para escrever este texto veio quando estava no Esch Café, no bairro paulistano dos jardins, com minha esposa e um casal de amigos especiais. Foi uma noite boa, mas de vinhos apenas medianos. Na hora de fazer a reserva, negociamos um belo desconto na taxa de rolha do estabelecimento (ponto para o Esch) e assim decidimos levar as crianças de casa, o que sempre garante uma boa economia na conta.

Saquei da adega um Borgonha branco para iniciar os trabalhos: um Chablis premier cru de 2003, cujo produtor esqueci de anotar -- um erro imperdoável para quem escreve sobre o assunto, eu sei. Minha expectativa não era das mais altas porque a safra de 2003, quente demais em quase toda a França, roubou a acidez que é a espinha dorsal dos brancos, aquilo que deixa a boca salivando pelo próximo gole. O chablizinho estava mesmo meio chocho, longe do ideal de frescor e mineralidade dessa apelação. Meu amigo, por sua vez, levou um Mondavi Cabernet Sauvignon Reserva 2004. Era um vinho gostoso, mas tinha algo que me incomodava bastante. O que seria? De forma objetiva, não havia muito a criticar naquele Mondavi, um produto intermediário da famosa vinícola californiana, vendido nos Estados Unidos por algo ao redor de 30 dólares. Ao Chablis faltava acidez e vida, um defeito fácil de ser identificado. O Mondavi, entretanto, era tecnicamente bem-feito: boa fruta, bom corpo, madeira bem dosada, álcool equilibrado com os demais elementos. Nada errado. Ainda assim, soube de imediato que jamais ficaria satisfeito com aquela garrafa.

Demorei no máximo um par de goles para concluir o porquê. À minha frente estava um vinho sem personalidade. Faltava ali algo particular, especial, diferente – para o bem ou para o mal. Correto, sim, mas e daí? Nada surpreendia, nada intrigava naquele Mondavi. Há rótulos assim, às pencas, em todos os países produtores do mundo. São vinhos sem carisma, sem um traço peculiar. Como aquela pessoa sem graça que se veste adequadamente, comporta-se adequadamente, fala coisas adequadas – mas que faz tudo isso sem marcar quem está à volta. Ninguém realmente se encanta com um sujeito desses, ainda que não exista nada específico a criticar naquela pessoa. E talvez isso seja exatamente uma parte do problema.

Num vinho de 15, de 20 ou até 30 reais esse padrão mediano de qualidade é louvável. Significa que, mesmo gastando relativamente pouco, o consumidor terá um produto confiável em mãos. Mas em rótulos de preço elevado, espera-se um “algo a mais”. Aí ser tecnicamente bem-feito não é qualidade: é apenas obrigação.

Importante frisar que um vinho com personalidade não é sinônimo de um vinho que agrada a todos os gostos. Ao contrário. Personalidade é algo que às vezes incomoda. Pode ser que o santo não bata, como dizem. Um produto assim não é necessariamente melhor, mas dificilmente passa indiferente – e dificilmente outra garrafa será igual em suas qualidades e também em seus defeitos.

Essa capacidade de ser único, individual – mesmo quando vivemos na era dos produtos massificados, como retratou brilhantemente o artista americano Andy Warhol em várias telas, como a que reproduzo acima --, é um dos elementos que torna o vinho tão fascinante. Cada uva, cada terreno, cada enólogo, cada vinícola, cada safra, cada técnica de plantio e de vinificação influem no resultado final. Mais ainda: a cada ano que a garrafa descansa na adega, seu conteúdo evolui e transforma-se de uma maneira difícil de prever.

Por isso beber um vinho traz em si sempre um elemento de surpresa. Quem compra uma garrafa de seu uísque preferido sabe exatamente o que terá para tomar. Quem compra um refrigerante, também. São produtos padronizados, sempre idênticos. Com o vinho isso não acontece – ou não deveria acontecer. Quando encontro pela frente rótulos que seguem uma cartilha técnica que os torna todos muito parecidos, ainda que bem-feitos, torço o nariz. Posso não querer nenhuma surpresa quando abro minha Coca-cola, mas quero ter o prazer de descobrir coisas únicas a cada garrafa de vinho que desarolho.