segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Gosto não se discute?


Por trás dos dois últimos textos que publiquei, há uma mesma questão fundamental: existe algo como “gosto certo” e “gosto errado” para vinho? Sim, porque uns acham que determinado rótulo merece 98 pontos, enquanto outros consideram que uma nota 90 já estaria de ótimo tamanho; uns elegem o Chile como melhor país produtor da América do Sul, outros defendem a Argentina e um terceiro grupo sustenta que o título deveria ir para o Uruguai.

Em contraposição às opiniões mais contundentes, existe aquele velho papo de que gosto não se discute. Por esse raciocínio, é impossível haver certo ou errado em toda a sorte de preferências -- seja por time de futebol, poesia, filmes, mulheres, quadros, comidas, bebidas ou qualquer outra coisa. Se prefiro guaraná a tubaína, quem pode dizer que estou errado? Se acho um Malbec argentino de 15 reais melhor que um Romanée-Conti 1985, qual a equação matemática, qual a legislação, qual a escritura sagrada ou a tábua dos mandamentos que diz que estou cometendo um equívoco imperdoável?

Bem, bem, bem... vamos analisar um pouco esse tema. A coisa não é tão simples. Acho que gosto é para ser discutido, sim – mais do que isso, é para ser desenvolvido, treinado, aperfeiçoado. Aprendido, enfim. Não se trata de uma posição pedante do “especialista” dizer ao “leigo” o que é bom e o que é ruim. Trata-se de formar um senso crítico e desenvolver uma sensibilidade apurada por prestar muita atenção em algo. E isso vale para tudo, não apenas vinhos. Muitas coisas boas da vida precisam ser aprendidas para serem usufruídas em sua plenitude.

Nenhuma criança entende como um quadro de Picasso pode ser revolucionário ou como um texto de Proust é profundo. É necessário ter certa bagagem para isso. Mesmo exemplos mais prosaicos são válidos. Alguém que segue assiduamente um esporte qualquer, como futebol ou tênis, por exemplo, será capaz de se deliciar com um lance genial, pois saberá que presenciou algo raro, executado com maestria. Aos olhos de uma pessoa que jamais acompanhou com atenção essa atividade, a mesma jogada terá muito menos graça, porque faltará base de comparação.

Moral da história: não é que exista propriamente gosto certo e gosto errado para vinho, mas existem, sim, níveis de desenvolvimento para apreciar essa bebida. Quem toma duas ou três garrafas por ano sem prestar muita atenção, por vezes junto com uma comida que nem combina direito, certamente não terá uma compreensão tão profunda como quem tem no vinho um hobby e está a todo momento lendo, discutindo e experimentando coisas novas.

Tudo muito bem, tudo muito bom, mas o que explica então a disparidade de opiniões entre críticos e especialistas, todos com um currículo que daria para encher um açude? Aí entra uma questão de “escola” e do peso que cada qual confere aos diferentes aspectos que compõem a avaliação de um vinho. Há aqueles que preferem produtos mais encorpados e exuberantes, que seguem um estilo moderno, como Robert Parker (foto acima). Outros, como nosso Ed Motta, são fãs de uma linha tradicional e sutil. O que eles têm em comum, contudo, é que sabem o que fazem -- cada um na sua praia, mas sabem. Se você gosta de vinhos concentrados, com um toque de madeira evidente, fruta explosiva e taninos macios, pode seguir as notas do Parker que a felicidade é quase garantida, salvo um ou outro escorregão até perdoável para quem experimenta uma taça atrás da outra como se fosse uma linha de montagem. Mas se prefere bebidas mais elegantes, leves e com mais acidez, vai quebrar a cara com muito “RP 98” por aí.

Por isso o importante é ir formando seu paladar aos poucos, sem pressa e sem medo de voltar atrás e reconsiderar antigas opiniões. Experimente sempre, prove produtos diferentes, e preste atenção aos defeitos e qualidades de cada um. É muito normal o sujeito começar a gostar de vinhos pelos rótulos mais “porrada”, que são mesmo sedutores e marcantes, e depois mudar para os mais elegantes, sutis, que respeitam mais a comida e são menos óbvios. Comigo foi assim. E ainda acho que tenho muito, mas muito a evoluir.

Se você aprecia vinhos, discuta seus gostos, sim. Não para ter razão ou deixar de ter, muito menos para impor seu ponto de vista, mas simplesmente pelo prazer de debater um assunto tão interessante – e para continuar aprendendo sempre.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Argentina vs Chile: quem é melhor?

O último texto (“Soy Loco por ti, Argentina” – ver logo abaixo) provocou certa polêmica, e é sempre bom quando os leitores se manifestam mais ativamente. Mesmo se não concordo com os argumentos de um ou outro, ainda assim fico feliz por criar algum burburinho. A possibilidade de interação é o grande barato dos blogs e o que torna esse novo tipo de veículo tão envolvente. Pelo nível dos comentários percebo que tem gente que entende do assunto lendo o Carta de Vinhos. Muitas vezes as informações e experiência que os leitores compartilham é o melhor conteúdo disponível nesta página virtual, muito mais enriquecedor do que eu sozinho poderia oferecer. Ainda bem.

Uma coisa puxa a outra e chego ao post atual, que também é um tema controverso. Então lá vai: que país faz os melhores vinhos da América do Sul atualmente? Não sou dono da verdade, por isso fiquem todos à vontade para opinar. Mas também não vou ficar em cima do muro.

Comecemos pelo óbvio: o Brasil não é. A produção nacional melhorou muito, mas ainda estamos nitidamente engatinhando. O único tipo de vinho em que o Brasil está à frente do resto do continente são os espumantes.

Depois, o Uruguai. Gosto de diversos rótulos uruguaios. O Prelúdio, por exemplo, é ótimo, muito elegante e parece evoluir bem na adega. Contudo, embora tenha simpatia pela produção local, não acho que o troféu deveria ir para o Uruguai. A quantidade de vinhos realmente bons é limitada e a qualidade média ainda poderia melhorar. A uva-símbolo do país, a Tannat, é bem interessante, só que sozinha não faz verão. É preciso desenvolver outras variedades e melhorar os cortes. Recentemente tomei um Pisano Tannat RPF 2002 que confirmou uma impressão que muitas vezes tenho de produtos feitos dessa casta. Mesmo sendo um rótulo relativamente simples, apresentava ótima estrutura e agradeceu os cinco anos de envelhecimento. No entanto, a fruta ficou num tom meio baixo, um pouco desvanecida, tanto que a madeira dominava demais o nariz e a boca.

Por eliminação, chegamos a Chile e Argentina, sem dúvida as grandes potências vinícolas da América do Sul. Seus melhores rótulos são reconhecidos e admirados internacionalmente, enquanto os produtos básicos e intermediários podem ser excelentes custo/benefício. Esses países divididos pela cordilheira dos Andes nutrem uma rivalidade histórica, que agora se repete nos vinhos com toda a força.

E aí, quem é melhor? Vamos por partes.

O Chile começou a revolução da qualidade um pouco antes, lá pelo final da década de 80. A Argentina, quase dez anos depois. Em compensação, o ritmo portenho andou mais ligeiro. É impressionante o salto que Mendoza deu, digamos, entre o que se fazia em 1998 e o que se faz hoje. Foi da zurrapa para o vinho.

Ambos países adotaram uvas francesas que até então ocupavam um papel secundário e elevaram-nas a uma posição de destaque. O Chile foi de Carmenere, uma variedade de Bordeaux que estava quase extinta e foi redescoberta em alguns vinhedos chilenos misturada à Merlot; a Argentina elegeu a Malbec, também francesa e igualmente pouco prestigiada em sua terra natal. Acho que as duas variedades originam, sozinhas ou em cortes, vinhos muito bons e cada qual com um caráter bem particular. Mas, na minha opinião, aqui quem marca ponto são os argentinos. Hoje os vinhos de Malbec são, na média, melhores que os de Carmenere em todos os níveis, desde os produtos básicos até os top. Repito: na média. Há excelentes exemplares de Carmenere e há Malbecs péssimos, monótonos e concentrados demais. Só que temos mais coisas razoáveis de Malbec e, sobretudo, os rótulos superpremium dessa variedade batem a maioria dos superpremium de Carmenere (até porque há poucos; a Carmenere é mais usada em blends mesmo). No Chile, a uva tinta de melhor qualidade ainda é a universal Cabernet Sauvignon.

Em diversidade climática, o Chile leva certa vantagem. O país é aquela tripa estreitinha, mas é comprido à beça (são 4 630 quilômetros de norte a sul e apenas 430 quilômetro entre o ponto mais largo de leste a oeste do país). Isso faz com que passe por muitas latitudes e, conseqüentemente, apresente climas muito diferentes. Há terrenos adequados para praticamente qualquer tipo de uva. De fato, Cabernet Sauvignon, Syrah, Carmenere, Merlot, Pinot Noir, Cariñena, Chardonnay, Riesling e Sauvignon Blanc estão todas gerando rótulos de alto nível no Chile. Até a Malbec vai bem: o Viu Manent Viu 1 é um produto excelente feito com essa casta.

Já a Argentina usa e abusa da plantação em montanhas para que o frio da altitude compense o calor excessivo da semi-desértica Mendoza. É um recurso não só válido como louvável e que está dando resultados. Ainda assim, a maioria das garrafas argentinas é marcada por uma potência e concentração típicas de regiões muito ensolaradas e quentes.

Claro, tudo isso é teoria. O que vale mesmo é na taça, certo? E na taça o Chile ganha por um motivo principal: os bons vinhos chilenos são mais elegantes, mais refinados. Os argentinos podem ser excelentes, mas têm a mão pesada. Isso não é um fato indiscutível. É apenas minha opinião pessoal.

Diversos especialistas respeitados dizem que a Argentina logo, logo, vai superar o Chile – na verdade, muitos acham que já superou. A Argentina tem maiores extensões de áreas cultiváveis, mais recursos financeiros, atraiu investidores e enólogos internacionais de peso e deu um salto inacreditável de qualidade num período curtíssimo. Pode ser. Mas estou falando de hoje. E hoje eu prefiro os vinhos chilenos.

De novo – já que o assunto é polêmico, convém deixar minhas opiniões bem claras – isso é uma média. Muitos rótulos argentinos são absolutamente fantásticos e alguns são inclusive elegantes. Achaval-Ferrer, Cobos, Nicolas Catena Zapata, Cheval des Andes e Iscay, entre alguns outros, são bons demais para o meu gosto. Só que do lado de lá da cordilheira temos Don Melchor, Seña, Viñedo Chadwick, Montes M, Montes Folly, Clos Apalta, Domus Aurea, Casa Real, Almaviva e outros tantos – mesmo linhas intermediárias como a Terrunyo, da Concha y Toro, chegam a um patamar de qualidade bastante elevado no Chile. Para não falar dos brancos, como o ótimo Sol de Sol (chardonnay), para mim o melhor produto dessa uva na América do Sul.

E para você, qual o lado preferido da Cordilheira dos Andes?

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Soy loco por ti, Argentina


Já faz tempo que o renomado crítico americano Robert Parker, de longe o mais influente do mundo, trabalha com uma equipe de colaboradores fixos. Também, pudera. Como um único ser humano conseguiria analisar e dar notas a milhares e milhares de vinhos provenientes de todas as principais áreas vinícolas do globo? Não diria “haja fígado”, porque em degustações profissionais não se ingere a bebida, mas “haja nariz” e “haja língua”. Por isso, Parker concentra-se em algumas regiões de sua preferência, como Bordeaux, Rhône e Califórnia. O resto ele terceiriza. Muita gente não sabe, mas Parker nunca deu uma cheirada sequer em diversos rótulos da Borgonha, do Piemonte ou de Portugal, por exemplo, que as importadoras ostentam em seus catálogos com indicações como “RP 92” ou “RP 87”, seguindo a tradicional escala de 100 pontos.

E foi assim que os vinhos da América do Sul acabaram entregues ao julgamento de Jay Miller, o sujeito com cara de maluco-bonachão da foto aí de cima (por sinal, Miller é PhD em psicologia). É ele quem dá as notas e faz os comentários para as garrafas do Chile e da Argentina que são analisadas na Wine Advocate, a publicação de Parker. Pelo que Miller tem escrito, imagino que não tardará em ganhar uma estátua em Mendoza. O crítico tem sido uma mãe para nuestros hermanos. Na última bateria de degustações, ele disparou uma saraivada de notas altíssimas como nunca se viu por aqui: choveu 96 pontos para vários rótulos e um punhado foi agraciado com 98 pontos.

Para ter uma idéia do que isso significa, o mitológico Château Margaux, um dos ícones máximos da França, só recebeu nota igual ou superior a 98 em sete safras (2005, 2003, 2000, 1996, 1990, 1953, 1928) dentre 49 analisadas por Robert Parker. Eis que a argentina Viña Cobos, que começou a engarrafar seus vinhos em 1999 – é um bebê de fraldas em termos de vinicultura --, já tem três rótulos com essa pontuação que é usada para produtos que flertam com a perfeição. A também novata Achaval-Ferrer, fundada há dez anos, ganhou de Miller um 98 pontos (para o Finca Altamira 2004), um 97 pontos e um 96 pontos. E Nicolas Catena, patriarca da vinicultura de qualidade em Mendoza, mas também um novato em termos mundiais, levou dois 98 pontos.

Não quero desmerecer a notável evolução dos vinhos argentinos, mas vamos devagar. As três vinícolas mencionadas acima são mesmo excelentes e possuem, todas elas, rótulos de respeito. Contudo, acho que as notas estão infladas. Basta comparar as resenhas dos rótulos de Mendoza com as de regiões bem mais tradicionais e sofisticadas, como Borgonha e Piemonte, para ficar claro que Miller está generoso demais. Um detalhe que me deixou especialmente cético é a longevidade que o crítico estima para os rótulos argentinos. A recomendação é beber o Nicolas Catena Zapa 2004 até – pasmem – 2058! Uau... poucos franceses chegam a 50 anos. Do Achaval-Ferrer, ele diz que “está confiante que vai evoluir da mesma maneira que um Bordeaux premier grand cru”. Confiante baseado em quê? Para os Cobos que estão no mercado, Miller foi um pouquinho mais moderado: estarão bons até 2030.

Acho temerário fazer essas afirmações por três motivos. Primeiro por não haver histórico de evolução de vinhos premium na Argentina, pois a vinicultura de ponta tem cerca de 15 anos no país. Segundo porque tampouco há histórico que comprove uma evolução tão longa de vinhos de Malbec, casta que está presente, sozinha ou em corte, em todos esses rótulos. E, três, porque o que se viu de evolução dos vinhos argentinos e chilenos feitos de forma “moderna”, com técnicas como a microoxigenação, até agora não chega a entusiasmar.

Talvez eu esteja errado e Miller seja um visionário. Temos que esperar alguns anos para ter certeza. Mas minha interpretação é que os produtos da Argentina são muito concentrados, seguindo um estilo que agrada a “escola Parker”, que preza a força sobre a elegância. Por isso entusiasmam tanto quem reza por essa cartilha. Por isso também o Chile, embora tenha ganhado altas notas de Miller, não teve nenhum vinho que chegasse aos 98 pontos – os rótulos chilenos são, na média, mais elegantes do que os argentinos.

Acho que a vinicultura da Argentina evoluiu muito e pode vir a figurar entre as melhores do mundo. O que falta para isso é um senso maior de leveza, de sutileza. Esse movimento em favor da elegância já começou em Mendoza, mas ainda está longe de se completar. Além disso, os grandes franceses, italianos, alemães (brancos) e espanhóis têm um toque adicional de complexidade -- definida como riqueza e diversidade de aromas e sabores não-convencionais -- e uma capacidade de envelhecer que o Novo Mundo ainda precisa provar que algum dia conseguirá alcançar.

Para alguns críticos, infelizmente, o entusiasmo de sentir uma bomba de frutas em compota na taça é tão grande que nada mais importa.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Mise en bouteille au Brasil


Com perdão da lista de estereótipos que segue, no país do futebol, do samba e da cachaça, até onde a produção de vinhos pode ir? No último texto, questionei se conseguiremos elevar o tipo de fermentado de uvas que fazemos melhor – os espumantes – a um novo patamar de qualidade, seguindo exemplo do que Chile e Argentina vêm fazendo com seus tintos há alguns anos. Não me arrisquei a dar uma resposta definitiva, mas acredito que sim, os produtores da Serra Gaúcha têm condições para chegar lá em médio prazo. Torço para que cheguem mesmo.

Semana passada tomei o Casa Valduga Brut 130 anos, um produto premium feito pelo método champenoise, e fiquei ainda mais convencido disso. Trata-se de um espumante para comida: muito encorpado, cremoso, com aromas complexos de tostado e frutas secas. A única crítica que faria é que faltou um pouco de acidez para balancear o conjunto, tornar a bebida menos pesada e deixar aquela sensação de "quero mais" na boca. Mesmo assim, é um vinho sério, que vale cada centavo dos 45 reais que paguei pela garrafa. Tem uma proposta quase oposta ao do ótimo Chandon Excellence, que é muito leve, seco e quase austero – um produto que dá para beber de garrafa, porque é ótimo e não enjoa jamais. É bom ver que conseguimos produzir espumantes em vários estilos diferentes.

Miolo, Salton, Cave de Amadeu, Casa Valduga, Chandon e vários outros estão fazendo um trabalho competente, que merece aplausos e me deixa otimista. Mas de vez em quando tomamos um champanhe de verdade, ou aparece um rosé vagabundo nacional por aí, e nosso otimismo é temperado por uma saudável dose de realismo. Ainda temos bastante a melhorar. A boa notícia é que provavelmente podemos.

Só que nem só de espumantes se faz o mundo dos vinhos. E o resto? Não gosto de nacionalismo cego, mas tampouco gosto de quem se recusa a olhar para frente. É obvio que a vasta maioria do território nacional não tem clima adequado à produção de rótulos de qualidade. Mas com o avanço das técnicas de manejo dos parreirais e de vinificação, com o mapeamento de novas áreas para o plantio, com a seleção de variedades de uva que se adaptam melhor a determinados terrenos e com a consultoria de enólogos respeitados internacionalmente, podemos avançar. Nos espumantes provavelmente conseguiremos avançar mais do que nos demais tipos de vinho, mas isso não significa que não chegaremos a fazer tintos e brancos de bom nível. Na verdade, já temos exemplares bem razoáveis.

Entre os tintos da Serra Gaúcha, a crítica que faço é que, aparentemente, as grandes vinícolas vêm tentando perseguir um estilo muito “internacional” – vinhos encorpados e concentrados, com aromas de geléia e frutas doces, supermaduras. Entende-se, porque rótulos assim são apreciados por críticos influentes e por uma fatia grande dos consumidores. Ninguém investe no que não está vendendo. Vinho é um negócio e o mercado é rei. O problema é que se o clima semi-desértico de Mendoza ou a ensolarada Austrália geram produtos hiperconcentrados e alcoólicos quase naturalmente, na úmida e tantas vezes nublada Serra Gaúcha, por outro lado, a vocação “natural” seria de vinhos mais leves, mais elegantes, mais europeus. A moda é pendular e em algum momento esse estilo clássico voltará com força. Entre os conhecedores de verdade, aliás, nunca deixou de ser o predileto. Se não for comercialmente viável fazer todos produtos top com mais ênfase no refinamento do que na potência, que pelo menos cada grande vinícola tenha um rótulo assim. Fica a sugestão.

Já no Vale do São Francisco, onde empresas como a Vinibrasil fazem um trabalho ousado e pioneiro, a coisa é diferente. Posso estar errado, mas me parece que lá seria possível buscar um estilo de vinho bastante encorpado para os rótulos mais caros, pois o sol até em excesso da região gera uvas com muito açúcar. Além disso, o Nordeste parece ter vocação para produzir vastas quantidades de tintos, brancos e espumantes simples e frutados – sem pretensão, mas que podem ser gostosos e bem-feitos -- para vender a preços populares.

Para fechar, os brancos. Nessa categoria, até agora não bebi nada melhor no Brasil do que o chardonnay e, depois, o sauvignon blanc da vinícola Villa Francioni, da região serrana de Santa Catarina. Fiquei surpreso pela qualidade alcançada em tão pouco tempo. Essa é uma área vinícola nova que está mostrando ótimo potencial. Esses brancos não fazem feio frente a rótulos muito bons do Chile, Argentina e Uruguai.

Se fosse escolher os melhores vinhos nacionais, acho que colocaria o Salton Talento como tinto campeão; o Villa Francioni Chardonnay como o branco top do país; e Chandon Excellance como nosso espumante que melhor cumpre sua proposta. Mas essa não é uma lista definitiva e pode mudar dependendo da safra. Todos esses produtos têm concorrentes fortes colados em seus calcanhares. Acho que quem se distanciou mais e abriu vantagem em relação aos rivais são os brancos da Villa Francioni. Neste momento não consigo lembrar de outros produtos brasileiros que cheguem muito perto.

Já existem bons vinhos nacionais, coisa que era difícil encontrar há apenas dez anos. Estamos evoluindo, e bem. Acho que em um futuro não muito distante teremos coisa ainda melhor. Creio que teremos ótimos tintos, mas também que vai ser difícil chegar ao topo do topo nessa categoria. Contudo, suspeito que poderemos, sim, dizer algum dia que temos "um grande espumante brasileiro". Nesse ponto, já somos tão bons ou melhores que quase todas as potências vinícolas do Novo Mundo. Por que não seguir evoluindo e tomar a dianteira nesse mercado?

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

O desafio dos espumantes nacionais


Foi-se o Natal, foi-se o reveillón, chegou 2008 e chegaram também alguns quilos a mais, efeito colateral quase inevitável nessa época de festanças e comilanças. Hora de retomar os trabalhos no blog. Resisti a falar de espumantes no final do ano, como todo mundo costuma fazer, porque honestamente não achei que tinha muito de novo a acrescentar. É sempre aquele blábláblá: champanhe é champanhe, imbatível; e o espumante brasileiro é o melhor tipo de vinho que se produz no país. As duas coisas são verdadeiras, mas estão longe de ser uma novidade digna de nota.

Não falei sobre espumantes até agora, mas bebi um tantinho, incluindo aí alguns nacionais e outros importados. Fiz isso com um olhar – e um paladar e um olfato – crítico, prestando atenção aos detalhes de cada produto, como virou hábito desde que o vinho deixou de ser apenas um prazer para tornar-se um hobby levado a sério – e, conseqüentemente, um prazer ainda maior. Acho que, finalmente, tenho algo a dizer sobre esse assunto recorrente na virada do ano.

Meu ponto é: está chegando o momento de os fabricantes de espumantes brasileiros subirem alguns degraus de qualidade e de marketing – duas coisas que precisam andar de mãos dadas para causar um real impacto no mercado. Existe uma oportunidade bem madura para isso, porque sem nenhum ufanismo o Brasil já produz os melhores espumantes da América do Sul e temos bons terrenos e bom clima para esse tipo de bebida (especialmente na Serra Gaúcha). O que falta agora?

Falta fazer o que o Chile fez há uns dez ou doze anos e a Argentina um pouco mais tarde com vinhos tintos: entrar na área dos rótulos superpremium, aqueles reconhecidos internacionalmente como produtos de elite e cobiçados – e cobrados – como tal. Os vinhos chilenos ganharam novo status com marcas como o Don Melchor, da Concha y Toro, e o Seña, entre outros. Na Argentina, o mesmo papel foi assumido pelo Nicolas Catena Zapata e, depois, Achaval-Ferrer e Cobos. Esses nomes fizeram um bem enorme à produção vinícola de seus países ao mostrar ao mundo que nossos vizinhos sul-americanos tinham capacidade de produzir vinhos no grau mais elevado de exigência. Isso gerou a percepção de que Chile e Argentina são bons nessa área, o que proporciona um efeito de marketing muito positivo que se estende inclusive aos rótulos simples.

Qual vinícola se candidata a ser pioneira em dar um salto semelhante de qualidade por aqui com espumantes? Hoje temos alguns representantes de respeito, incluindo aí Salton Evidence, Miolo Brut Millésime, Cave Geisse Nature Terroir e – meu preferido – o Chandon Excellence. São produtos bons, que custam entre 20 dólares e 40 dólares, assim como já existiam bons tintos dessa faixa de preço no Chile há dez anos. Mas não são rótulos superpremium. Tomei alguns desses espumantes brasileiros no final do ano e, num intervalo de tempo pequeno, tomei também um champanhe Laurent Perrier Millésime 1996. Simplesmente não tem comparação. A começar pelo fato de que o champanhe, indo para o décimo segundo ano de vida, estava jovem e vibrante como nenhuma bebida similar daqui poderia estar. Na minha opinião, um tinto chileno ou argentino nunca chega ao mesmo nível dos grandes Bordeaux, Borgonha ou Rhône. E nem dos melhores do Piemonte e Toscana, na Itália. Mas pode chegar relativamente perto – pelo menos mais perto do que os espumantes nacionais chegam dos champanhes atualmente.

Restam duas questões em aberto. A primeira é saber se os produtores nacionais querem dar esse salto de qualidade, que exige pesados investimentos em cultivo, tecnologia de vinificação e também em marketing e promoção no Brasil e no exterior. É preciso morrer com um dinheiro grosso para isso. Mas se Chile e Argentina fizeram, quer dizer que não é impossível em termos financeiros. Hoje os produtores da Serra Gaúcha estão mais focados no mercado de baixo preço e alto volume, onde, por sinal, vão muito bem. Tomei um Salton Brut de 15 reais e posso dizer que se trata de um vinho honesto, provavelmente a melhor opção disponível no Brasil nessa faixa quase popular. Tudo muito bem, mas não valeria apostar na outra ponta do mercado e investir o tanto necessário para encarar, se não os grandes champanhes, ao menos os champanhes mais simples e os cavas top de linha, os melhores Franciacorta (região de onde sai a elite dos espumantes italianos) e os bons espumantes de alguns outros países, como Portugal, Austrália e Estados Unidos?

A segunda questão é saber se os produtores nacionais podem fazer isso. Faz já um tempinho que eles estão empacados mais ou menos no mesmo patamar de qualidade. Até ai, compreende-se. Não se produz um grande espumante do dia para noite e, se não houve evolução nos últimos dois anos, certamente houve nos últimos três ou quatro, o que já está razoável. Por outro lado, quando tomo um espumante rosé como o Poética, da Salton, que foi tão elogiado por alguns críticos de vinho brasileiros, fico me perguntando se os tais críticos têm baixa expectativa quanto ao potencial de nossos espumantes -- e por isso elogiam uma bebida que é um bom refresco para beira de piscina, nada mais --, se são ufanistas ou se a resposta é alguma coisa pior, como desconhecimento do ofício ou rabo preso com os produtores. Enfim, não quero entrar nesse mérito. Mas é fato que ainda podemos exigir mais em termos de qualidade. Estou para ver um espumante rosé nacional que tenha alguma complexidade.

O mercado está aquecido, o consumidor está comprando como nunca, não temos concorrente na América do Sul para esse tipo de vinho, o mundo tem sede de bons espumantes e a produção de champanhe é limitada pela própria área geográfica restrita de onde saem essas jóias borbulhantes. Não está na hora de o Brasil pensar mais alto, como Chile e Argentina pensaram com seus tintos há alguns anos? Queremos? Conseguimos? Tenho o palpite de que, cedo ou tarde, a resposta será sim para essas indagações. Mas é só isso mesmo: um palpite. Alguém se arrisca a responder?