quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

O português do ano


Após um longo intervalo devido ao excesso de trabalho, estou de volta – e sem trazer um novo debate sobre aquele famoso crítico americano, conforme prometido. Desta vez quero falar de vinhos, mas por meio de um outro personagem: Carlos Lucas, que foi eleito enólogo do ano pela Revista de Vinhos de Portugal. Tive o prazer que conversar com Lucas recentemente. Ele também é responsável pelos rótulos da ViniBrasil, parceria da Expand com a Dão Sul no Vale do Rio São Francisco, no Nordeste brasileiro, uma região absolutamente inusitada para cultivar uvas viníferas.

Já provei, em ocasiões anteriores, diversos produtos que saíram das mãos de Lucas, que trabalha para a Dão Sul. Sobre um deles, o Quinta de Cabriz Escolha Virgílio Loureiro, comentei recentemente no post “Matizes” (ver abaixo). Já provei também o Pedro & Inês, este um Dão bem mais moderno, feito com um corte de Baga e Alfrocheiro, que é simplesmente delicioso; e o Four C, também moderno e muito sedutor. Infelizmente, ambos são bem caros: R$ 338 e R$ 368, respectivamente, na Expand.

De qualquer forma, Lucas é sem dúvida o enólogo da nova geração que melhor trabalha a região do Dão, que estava ficando para trás em relação ao Douro por ter sido lenta em se modernizar. É interessante a comparação que ele faz das três mais famosas áreas vinícolas portuguesas. “O Douro dá vinhos em um estilo muito internacional; o Alentejo, vinhos tipicamente portugueses; e o Dão, uma mistura dos dois”, diz. “Um ponto importante de destacar é que o Dão proporciona vinhos para a mesa de refeições. Na hora de escolher um rótulo português para acompanhar comida, nenhum técnico duvidaria em optar por um Dão.” Com o que, embora não seja técnico, concordo inteiramente. Boa parte da explicação para isso está na acidez mais acentuada, que ajuda muito na harmonização com comida. Lucas explica que o mosto das uvas no Dão geralmente apresenta pH de 3.4, enquanto no Douro está em 3.8 na mesma época.

Por razões óbvias, o vinho português sempre foi apreciado no Brasil. Mas no resto do mundo, em especial nos Estados Unidos, vinho português era apenas os fortificados do Porto. E só. Isso começou a mudar recentemente, de uns três ou quatro anos para cá, quando os produtos de mesa da terrinha entraram no radar dos críticos influentes – não vou citar o nome do dito cujo aqui outra vez, mas é ele mesmo e aquela outra revista de sempre. Só que os tais críticos concentraram seu trabalho no Douro, porque já conheciam o vinho do Porto que sai dali e porque os produtores locais estavam mais bem organizados para fazer um trabalho de relações públicas efetivo. Agora, parece que isso vai mudar. Lucas me contou que já estão marcadas para as próximas semanas visitas da equipe da Wine Spectator e de Mark Squires, que trabalha com Parker (pronto, falei), para conhecer os produtos do Dão. Pelo que conheço do gosto dessa turma, as notas talvez não sejam tão altas como as que o Douro tem conseguido. Mas acredito que serão bastante boas, com vários produtos acima de 90 pontos. Se for assim, será merecido.

Já no Vale do Rio São Francisco... bem, Lucas me falou com entusiasmo e brilho nos olhos do potencial do Nordeste brasileiro para vinhos. E definiu seu trabalho na ViniBrasil como “o projeto da minha vida”. Parece estranho, mas após uma hora de bate papo com ele, dá para entender. Lucas adora experimentar. Isso fica claro em duas de suas obras-primas: o Dourat, mistura de Touriga Nacional do Douro com Grenache do Priorato (Espanha), do qual são feitas apenas 1 200 garrafas por ano. Ou o Pião, um corte de Nebbiolo do Piemonte (Itália) com Touriga Nacional do Dão que proporciona apenas 1 000 garrafas anuais. Nunca provei nenhum dos dois, mas sei que ambos são caríssimos e badaladíssimos, verdadeiros vinhos “cult” disputados pelos aficionados de várias parte da Europa. Essa idéia de cortes de uvas originárias de países diferentes mostra como Lucas gosta de inovar e quebrar tradições. Acho isso sensacional. Quero que a boa tradição seja mantida em cada detalhe para que eu possa beber um vinho igual ao que se fazia há um século, igual ao que meus avós e bisavós tomaram. Mas quero também que, paralelamente, continue a ocorrer experimentações para que surjam coisas novas. Algumas serão ruins, mas outras podem ser maravilhosas.

O que está saindo do Vale do São Francisco, hoje, realmente não dá para chamar de maravilhoso. O Rio Sol é um vinho simples e o Paralelo 8, top do ViniBrasil, é apenas razoável para meu gosto. Os espumantes são notadamente inferiores aos da Serra Gaúcha. Mas aquele é um laboratório e tanto. Lucas diz que a uva Syrah adaptou-se muito bem e que, para sua surpresa, os mais recentes resultados com a Tempranillo estão causando entusiasmo. Lucas também detectou que o solo da região é livre da maioria das pragas que ataca as parreiras de uvas viníferas. Assim, planeja fazer um vinho com uvas de “pé franco”, como se chamam as plantas sem enxerto. Hoje quase todas as vinhas da Europa, Estados Unidos, Austrália etc. são de pés enxertados sob uma base (raiz) de parreira de uva de mesa (não uva vinífera), que é uma espécie resistente à filoxera, uma praga que arrasou os parreirais europeus no século XIX.

Se Lucas lograr produzir grandes vinhos no semi-árido nordestino, vai merecer o prêmio de melhor enólogo do mundo, não apenas de Portugal. Ele acha que pode. Tem méritos para merecer crédito.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

O advogado no banco dos réus


Vou mudar o disco. Prometo. Mas antes disso, tocarei uma vez mais o hit Robert Parker aqui no blog. Ele é tema recorrente para qualquer um que escreva regularmente sobre vinhos, de modo que no futuro inevitavelmente voltará à pauta. Contudo, garanto que darei longas férias a Mr. Parker -- até porque há muitas outras coisas interessantes que quero abordar neste espaço. Só gostaria de deixar clara minha opinião sobre ele, porque o que escrevi nos últimos textos parece ter dado a impressão em alguns leitores de que sou contra o famoso crítico americano. Então vamos esclarecer de uma vez por todas o que penso dele.

Primeiro: acho o Parker um grande crítico e considero sua contribuição e seu legado para essa indústria excepcional. Ele abriu caminho para que o trabalho de analisar vinhos seja visto com seriedade e executado seguindo uma metodologia mais consistente. Embora praticamente tudo o que ele faz já existisse antes, essas coisas eram restritas a um mundinho fechado. Com Parker, o especialista em vinhos passou a ser útil e acessível ao consumidor comum. Ele também desbancou famosas vinícolas européias que há muito sobreviviam da fama e da falta de informação, mas que na realidade estavam elaborando produtos medíocres. E acertou em cheio ao recusar publicidade e se negar a degustar qualquer garrafa que seja enviada como presente de vinícolas. Se eu já recebo alguns brindes por aqui, imagino que deve ter fila de caminhão maior do que nos portos brasileiros em frente a sua casa para entregar mimos dos produtores. Parker aceita e bebe, mas não dá nota. Só pontua o que ele mesmo comprou.

Minha principal ressalva a ele diz respeito a algumas avaliações com as quais, humildemente e cá de baixo, discordo. Já tomei produtos com altíssimas pontuações de Parker, sobretudo da Argentina, Austrália, Estados Unidos e Espanha que considerei vinhos exagerados, pesados, sem complexidade e indignos de tantos adjetivos elogiosos. Vinhos de certa forma monótonos, unidimensionais, nada intrigantes e cansativos de beber em grande quantidade. Que eu pense assim não quer dizer nada. É problema meu. Só que alguns grandes especialistas, como Steven Spurrier, da conceituada revista inglesa Decanter, pensam igual a mim. Ou eu igual a eles, para ser mais exato. Essas bolas fora do Parker, no entanto, são exceções. Adoro muitos rótulos desses quatro países e concordo com a maioria das avaliações de Parker ou de seu time de colaboradores para vinhos originários deles ou de quaisquer outros lugares. Mas que às vezes Parker decepciona, decepciona. Pelo menos para mim.

É meio duro de engolir que a Wine Advocate, sua publicação, confira maior nota para um Cobos, da Argentina, do que a um Château Cheval Blanc, de Bordeaux, ou mesmo Romanée-Conti, da Borgonha. O Cobos é bom, é melhor mesmo que muitos franceses consagrados, mas para mim não chega aos pés dos grandes da França – e para não me acusarem de “eurocêntrico”, nem ao mesmo nível dos top da Califórnia, que são espetaculares. Uma coisa é tirar a máscara de vinícolas famosas que só fazem porcaria, o que é louvável. Outra é sair distribuindo 98 pontos por aí quando os melhores vinhos da Europa só conseguem tal nota em safras excelentes. Tenha dó.

Se é assim, por que Parker não substitui o gigantesco estoque de sua adega particular, que ele mesmo admite que é dominada por franceses, por uns malbecões? Até me candidato a dar uma mão. Se quiser trocar comigo, a gente faz negócio. Meio contraditório isso, não? É algo como "você tome o que eu digo, mas eu tomo só francês mesmo porque não sou bobo."

Depois, acho que existem alguns problemas que derivam da enorme influência de Parker, mas que a rigor não são culpa dele. São muito mais culpa das vinícolas e dos importadores e distribuidores de vinhos. Creio que nos últimos dez ou 15 anos emergiu sim uma onda de tentar fazer vinhos com muita fruta madura, concentração e madeira, porque produtos com esse estilo tendem a ganhar notas maiores não só do Parker, como da Wine Spectator e outras fontes de referência. E aí pode acontecer de uma vinícola que fazia vinhos medíocres tomar consciência, investir em tecnologia e melhorar, o que é ótimo. Mas também acontece de produtores que seguiam um estilo próprio e interessante, que tinham uma assinatura, jogarem isso fora para seguir a moda. É culpa do Parker? Não exatamente. A vinícola fez o que quis.

Outra: essa tendência de os consumidores só comprarem vinho pelas notas. “Ah, comprei uma garrafa que tem 93 pontos do Parker”. Ok, a nota tem lá sua utilidade, é um recurso que acho válido, mas um vinho é muito mais do que dígitos. Ater-se aos pontos leva a uma simplificação meio empobrecedora de um produto que é culturalmente tão rico e que mesmo em termos de qualidade é sujeito a muitas variáveis. Se for para comer com um pato assado, por exemplo, prefiro um Borgonha – não importa se tem 87 RP, 85 RP ou sei lá quanto – do que um Syrah australiano de 93 pontos. De novo, não é culpa de Parker que as pessoas utilizem dessa forma o material que ele produz.

Encurtando: é possível olhar a taça meio cheia ou meio vazia. Parker trouxe muitas coisas positivas para o mundo do vinho, mas tem seus pecados e seus efeitos colaterais. Fazendo as contas, acho que o saldo dele está no azul, com folga. Desde o documentário Mondovino, nunca vi um crítico de qualquer assunto ser tão julgado como Parker tem sido. Esse historiador e advogado de Baltimore (essas são suas formações acadêmicas) não sai do banco dos réus. E tome pedrada. Uma ou outra ele talvez até mereça, mas tem havido uma malhação exagerada e injusta.

Parker é meu crítico preferido? Não. Prefiro a Jancis Robinson e Steven Spurrier. Prefiro Eric Asimov. Ou Hugh Johnson. Minha lista é grandinha. Mas nenhum deles tem a mesma importância ou a mesma influência, é preciso reconhecer. Que bom que existe um Parker. Gosto de seu trabalho. Sou a favor do Parker na maioria das vezes. Só não preciso concordar com tudo o que ele diz, nem achar que ele acerta sempre. Alguém acerta?

PS.: Encontrei no site do Parker a transcrição de uma entrevista que o próprio concedeu em 2005. Para a turma que adora o Parker e ao mesmo tempo critica quem é “eurocêntrico”, transcrevo essa resposta do crítico:

“Virtualmente, todo o vinho que bebo por prazer é francês e minha adega reflete isso. Bordeaux, Vale do Rhône, Borgonha (particularmente os brancos), Champagne e, claro, os brancos da Alsácia dominam minha coleção. Eu também tenho um fraco pelos grandes Barolos e Barbarescos do norte da Itália e no Novo Mundo aprecio a riqueza dos melhores vinhos da Califórnia. Mas em grande medida me considero um francófilo e meus gostos vão na direção da cozinha francesa e vinhos franceses.”

E assim ficamos combinados que o clube dos eurocêntricos, do qual este humilde blogueiro faz parte, tem o prazer de considerar Robert Parker como presidente honorário.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Matizes


Se há uma coisa que aprendi é que não existem verdades absolutas em se tratando de vinhos. Estava revendo meus textos antigos, quando ainda publicava este blog no portal da revista Exame, e me deparei com as entrevistas que fiz com Arthur Azevedo, presidente da Associação Brasileira de Sommeliers de São Paulo (ABS-SP), com o músico e crítico enogastronômico Ed Motta e com Jonathan Nossiter, autor do documentário Mondovino. Três conhecedores, três pontos de vista diferentes. Vou reproduzir aqui alguns trechos do que eles falaram.

Colocar as respostas deles lado a lado gera um resultado curioso: é como um dégradé. Arthur é mais pró-mercado, pró-tecnologia, pró-Parker. É a direita do vinho. Ed Motta já pende para o outro lado. Ele é da turma dos vinhos biodinâmicos. Tem um gosto que foge aos padrões que encontramos nas prateleiras dos supermercados e lojas especializadas. Admite que Parker entende de Bordeaux e Rhône, mas acha que para Borgonha o famoso crítico americano “é uma lástima”. Nossiter é a extrema esquerda – quase xiita. Ataca a globalização do vinho, que torna produtos de países e regiões diferentes muito parecidos. Para ele, Robert Parker e o famoso enólogo-consultor Michel Rolland são os responsáveis por essa padronização nefasta que sufoca os pequenos produtores artesanais.

O diabo é que, ao reler essas opiniões de matizes tão díspares, não consigo deixar de pensar que os três têm lá seu quinhão de razão, por mais paradoxal que isso seja. Sei lá se existe alguém mais certo do que o outro – este blog é naturalmente um espaço de debates e todos podem deixar seus comentários para enriquecer a discussão.

Resolvi resgatar essas entrevistas quando, na última sexta-feira, tomei dois vinhos portugueses com características quase opostas, mas ainda assim ambos excelentes. O Quinta do Vale Dona Maria 2000, um Douro de estilo moderno, com muita fruta, carregado na madeira e 14,5% de álcool. E outro portuga da mesma safra, o Quinta de Cabriz Escolha Virgílio Loureiro, um Dão tradicional, com 13% de álcool, mais acidez, menos fruta e carvalho discreto. E, bem, lá vou eu ficar em cima do muro outra vez, mas preciso dizer que adorei os dois. O Dão ainda era uma criança, atestando que vinhos em estilo tradicional envelhecem mais e freqüentemente melhor. Arrisco dizer que este Virgílio Loureiro chega até 2015 em boa forma e talvez vá ainda mais longe. O Douro estava no auge, prontíssimo para a taça, exibindo uma cor atijolada turva, aromas evoluídos com um toque doce no nariz e muito macio na boca. Se tivesse uma garrafa dessas em casa, não esperaria muito mais para abri-la.

Fico contente de conseguir apreciar os dois. Num dia frio ou com uma comida forte, o Douro iria melhor. Com pratos mais leves, como um pato ou um coelho, o Dão seria perfeito. Da mesma forma, acho ótimo que existam três figuras como o Arthur, o Ed Motta e o Nossiter, com opiniões muitas vezes divergentes – e mesmo assim um ponto em comum: a paixão pelos vinhos. E viva a diversidade. Deixo a palavra com eles.

ARTHUR AZEVEDO

O senhor concorda com as críticas que são feitas ao Robert Parker, de que ele gosta de vinhos concentrados demais, com muita madeira e nenhuma elegância?

Arthur Azevedo: De forma nenhuma. Para desmentir estas críticas basta ler as avaliações que Parker faz dos vinhos de Bordeaux e o seu apreço por vinhos elegantes e complexos. Acredito que criticar o Parker virou moda, mas a maioria das pessoas que adota esta postura não conhece nada de vinho e busca apenas seus 15 minutos de fama. Também o criticam produtores preguiçosos, que nada fazem para melhorar seu produto. Robert Parker é de longe o mais importante crítico de vinho do mundo e o primeiro a mostrar as fragilidades de produtores de muito nome e pouca qualidade. Parker, como qualquer ser humano, pode ter suas preferências pessoais, mas a seriedade de suas críticas e a consistência de suas análises são uma referência segura para os consumidores.

O que acha da crítica de que a tecnologia é responsável por padronizar os vinhos no mundo todo, o que acaba com a diversidade natural de cada região?

Arthur Azevedo: Também discordo frontalmente de quem acha que tecnologia faz mal. De forma geral, a tecnologia ajudou a melhorar significativamente a imensa maioria dos vinhos do mundo. Geralmente, só quem não dispõe de recursos financeiros para comprar tecnologia para sua vinícola é que se coloca contra seu uso. Caso emblemático é o de pequenos produtores que, sem dinheiro para comprar as dispendiosas barricas de carvalho, atacam de forma absurda quem as usa, apoiando-se no argumento surrealista de que as barricas "descaracterizariam o vinho". Pior é que alguns luminares concordam com esta descabida argumentação... Quando o produtor é competente, o uso da tecnologia só reforça o caráter dos vinhos, que podem desta forma expressar de forma cristalina as características e a tipicidade de cada região.

O que o senhor acha de vinhos artesanais?

Arthur Azevedo: Depende do produtor. A imensa maioria é de qualidade duvidosa e só encontra respaldo nos xiitas de plantão. Mas nos dias atuais cada vez menos estes vinhos terão espaço nas adegas dos consumidores mais exigentes e bem informados.

O que o senhor acha da vinicultura orgância? E da biodinâmica?

Arthur Azevedo: É uma questão de fé. Acredito que cuidados viticulturais adequados e uso mínimo de química são extremamente benéficos para a saúde das uvas. Sabe-se que vinhos obtidos de uvas sadias e bem cuidadas têm maior probabilidade de ter boa qualidade. Mas não sou radical nesta questão. Já tive o desprazer de degustar vinhos orgânicos/ biodinâmicos de péssima qualidade. O que me desagrada é ver que muitos produtores usam a biodinâmica como recurso de marketing, sem se preocupar com a qualidade final dos vinhos.

ED MOTTA

É sabido que sua preferência recai sobre a Borgonha, sobre vinhos artesanais e biodinâmicos (vinhos biodinâmicos são aqueles produzidos de forma 100% natural, sem uso de agrotóxicos ou fertilizantes e respeitando os ciclos da natureza). Qual o motivo dessa predileção?

Ed Motta: A Borgonha é o que mais me emociona, tanto branco quanto tinto. São os vinhos mais complexos, ricos de fruta e aromas, que conheço. Minha preferência recai única e exclusivamente sobre a França em geral. Tanto que a única revista de vinho que assino é a Revue Du Vin De France, que fala dos vinhos que realmente me interessam. Francofilia prazeirosamente assumida! Mesmo que eu esteja num país que produz vinho, se tiver um francês top na carta, com certeza vou beber o francês. Ano passado em Milão aconteceu um fato muito engraçado no restaurante Da Berti. Eu estava fazendo uma temporada no club de jazz Blue Note. Quando entrei no restaurante para almoçar, um garçom que ia ao show e me conhecia acabou me apresentando ao dono, que soube do meu interesse por vinhos me convidou para conhecer a adega da família. Era uma coleção de vinhos italianos impressionante. Eu tinha escolhido duas garrafas do Gaja antigas da época do pai, quando o rótulo era amarelo e os norte-americanos ainda não bebiam Gaja. Mas na saída da adega vi uma parede de Clos De Tart do Mommessin todas da década de 60... Não pensei nem um segundo e disse: "o senhor por favor me perdoe mas eu queria esses Borgonhas". Ele me deu umas dez garrafas e não cobrou dizendo que não queria aqueles malditos vinhos! A gastronomia italiana é minha favorita. O paraíso para mim é vinho francês e comida italiana, mas finalizando com queijos franceses.

Você critica muito os vinhos superfrutados e cheios de carvalho -- que você define como "vinhos disneilândia" (adoro isso). Como surgiu essa definição?

Ed Motta: É uma gozação com o gosto gastronômico norte-americano médio, um gosto infantil, de bala, doce, sorvete. Mas isso é febre no mundo todo, na Europa inclusive. Tem produtor da Borgonha mudando o rótulo e o vinho para se parecer com os californianos, australianos etc. Efeitos da Bobalização.

Não há vinhos no estilo muito frutado e com muita madeira que seja bom?

Ed Motta: Se eu estiver num churrasco (como convidado, é claro) e aparecer uma coisa dessas eu acho até suportável. Mas não compro isso com meu dinheiro e não abro com minhas mãos. Agora frutado, eu vou para o vale do Loire, isso é frutado de verdade pra mim. E a fruta da Borgonha ? E da Alsácia ? Essa é fruta que eu gosto.

Qual sua opinião sobre os vinhos argentinos? E chilenos?

Ed Motta: Tem coisa boa. Na Argentina meus favoritos são os malbec top do Achaval Ferrer. Esse tem o frutão, mas é diferente, grande vinho. Do Chile tem o Antyal, Domus Aurea, Pargua. Mas no momento em que vou abrir um vinho para o meu prazer mesmo é sempre França... Borgonha, Loire, Rhône, Jura, Languedoc, Provence, Bordeaux.

Compare Borgonha x Bordeaux

Ed Motta: Os Bordeaux são muito parecidos -- eu gosto, mas não são meus favoritos. Se vou comer um cordeiro, um Bordeaux é das melhores opções, mas talvez prefira um Hermitage ou Cote Rotie. Em Bordeaux os vinhos de Pomerol, St.Emilion e Graves são meus favoritos. Gosto dos Bordeaux que tem alma borguinhone, Trotanoy, Haut-Brion etc. Os Borgonhas têm maior sutileza, nuances, por isso gosto bem mais. Bordeaux eu bebo com prazer, mas nunca compro. Depois da Borgonha na minha preferência vem Loire, Rhône, Alsácia e só depois entra Bordeaux. Mas ainda assim prefiro Bordeaux a qualquer vinho de fora da França.

Qual sua opinião sobre o crítico Robert Parker?

Ed Motta: Eu tenho todos os livros do Robert Parker, as descrições são ótimas principalmente em Bordeaux e Rhône, a praia dele. Na Borgonha é uma lástima, ele não é um grande fã e inclusive tem problemas pessoais na região. Os leitores e repetidores de notas são mais chatos do que o Robert Parker em si. A tabuada me irrita, aquele parêntese do lado dos vinhos com RP ou WS... uma bobagem.

JONATHAN NOSSITER

Michel Rolland é o culpado por essa onda de vinhos padronizados?

Nossiter: Michel Rolland é claramente o líder desse movimento. Pegue um desses vinhos superencorpados de Rolland e me diga: é chileno, argentino, australiano, de que país é? Ninguém consegue distinguir. É tudo igual. Entre os produtores artesanais, há vinhos particulares, que você pode gostar ou não gostar, mas que não têm a pretensão de trazer prazer para todos. São vinhos com defeitos -- e eles não escondem isso. Os vinhos de Rolland tentam sempre esconder defeitos, alcançar um alto nível de perfeição técnica e previsibilidade de produto. Eles estão na lógica de mercado. É outra ambição. O Rolland e seus amigos me acusaram de fazer algo falso e manipulador em Mondovino. Se fosse isso mesmo, eu teria sofrido um processo. Mas nenhum deles me processou -- muitos me ameaçaram, mas ninguém fez. Porque as palavras são deles no filme. O tempo todo [em que a filmagem acompanhou o trabalho de Rolland] o Rolland quis andar no carro dele e fazia visitas de dez minutos a cada vinícola que é sua cliente. Não o vi ficar um segundo no vinhedo. É chocante a arrogância das pessoas que têm muito poder nesse mundo, que estão acostumadas ser tratadas como reis, e como eles estão deformando o conhecimento do vinho do mundo inteiro.

O senhor acha que nenhum vinho feito por Rolland é bom?

Nossiter: O Rolland é um enólogo com conhecimento técnico profundo. É preciso reconhecer isso. Todos os seus vinhos têm nível técnico alto. São vinhos bem feitos, como os filme de Hollywood repletos de efeitos especiais são bem feitos. Nunca vou dizer que você não pode gostar desse tipo de vinho, pelo amor de Deus. Sou pela pluralidade de gostos, de sabores. Mas que alma há por trás? Que intenção humana e cultural está por trás? Porque vinho é sim um produto no mercado, mas também é uma expressão humana e cultural. Então qual a intenção atrás de um filme de Hollywood? Os filmes de Hollywood estão invadindo as telas e a conseqüência disso é que uma produção local, sem os efeitos especiais dos Estados Unidos, não encontra mais espaço no mercado. Porque esse gosto americano está dominando, ficando hegemônico. Com o vinho acontece a mesma coisa, e a cumplicidade de críticos poderosos ajuda. Esse sabor está sendo imitado no mundo inteiro. Esse é um perigo verdadeiro. O que está acontecendo no Brasil, com esses pequenos produtores artesanais, é um milagre. No Uruguai, a situação foi muito promissora há três anos, mas hoje é uma catástrofe. Eles escolheram imitar os padrões argentinos. Alguns vinhos da uva Tannat que antes eram interessante hoje em dia são vinhos argentinos menos bem feitos. Há exceções, mas poucas.

Mas porque é preciso tomar partido? Não é possível gostar dos dois estilos? Os vinhos à Rolland não podem viver ao lado dos artesanais?

Nossiter: A princípio, claro. Mas o problema é que há uma tendência do mundo todo de homogeneização. As grandes vinícolas que seguem um estilo padronizado vão dominar o mercado e impedir que o consumidor brasileiro conheça coisas diferentes. Para chegar num vinho como o de Álvaro Escher as pessoas precisarão de muito esforço. Veja a arrogância de Michell Rolland quando diz que no Brasil só há dois ou três vinhos bons. Alguém que não fala português, não passa tempo aqui, não conhece os produtores locais... isso me deixa bastante zangado.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Cinzas


Ufa! Chegou a quarta-feira de cinzas. A denominação desse dia faz mais sentido do que nunca após um carnaval na Bahia, de modo que este será um texto curto apenas para dizer que estou (meio) vivo -- e para compartilhar algumas breves idéias a respeito de vinhos, claro. Estive em Salvador a convite da fabricante de charutos Menendez Amerino, que detém as marcas Alonso Menendez e Dona Flor. A empresa organizou um belíssimo camarote no circuito do Campo Grande, o mais antigo da cidade. O espaço estava muito bem servido de comidas e bebidas, mas passei ao largo dos vinhos. O máximo que fiz foi tomar meia taça do sempre honesto (e nunca empolgante) espumante básico da Salton. E só.

Para além das discussões inflamadas – talvez inflamadas demais em alguns casos – que os últimos posts levantaram sobre estilo Novo Mundo x Velho Mundo, isso me faz pensar que o mais importante no momento de escolher um vinho é... o momento, justamente. Ok, todo mundo que lê este blog já cansou de saber que acho os rótulos feitos em estilo tradicional mais fáceis de harmonizar com comida. Mas até este “eurocêntrico” aqui admite que há casos em que existem opções melhores da Argentina, Chile ou Austrália do que da velha Europa. Seja por custo/benefício, seja por ser um dia frio que pede um vinhão encorpado, seja porque estes países do Novo Mundo têm mesmo ofertas consistente de produtos maravilhosos que merecem ser conhecidos.

Sim, e também há casos em que outras bebidas podem descer melhor do que vinho. Num barzinho no Rio de Janeiro, perto do mar, de chinelo, sal no corpo e um sol de 40 graus na cabeça... alguém consegue pensar em algo melhor do que um chope bem tirado? Com uma feijoada entre amigos, num lugar simples e despojado, fica difícil resistir a uma caipirinha. E ali, no carnaval de Salvador, com aquele calor e o clima informal – informal é eufemismo --, com a oferta de acarajé e outras comidas típicas, simplesmente não achei lugar para a minha bebida preferida. Fui de cerveja mesmo. Não me arrependi.

Há um outro capítulo nessa história que é a harmonização de charutos com bebidas. Obviamente o camarote da Menendez tinha diversas opções à disposição. É realmente difícil combinar "puros" com vinhos. Apenas os fortificados, como Porto, resistem. Mesmo assim, se eu tiver um grande Porto envelhecido em casa, jamais tomaria junto com charuto. No camarote havia uísque 12 anos e, melhor ainda, algumas cachaças com passagem em madeira. No futuro pretendo fazer um texto mais detalhado sobre compatibilização de charutos com bebidas. Por ora, vou curtir minha quarta-feira de cinzas. Mais uma vez, sem vinho. Hoje nada vai harmonizar melhor do que um belo copo de água mineral.