sábado, 3 de maio de 2008

Um que a mais


Entardecer do outono. Varanda de casa. O céu azul a perder de vista, uma brisa fresca e constante, o cheiro da terra e das plantas molhadas pela chuva que ontem castigou São Paulo – mas a quem hoje é preciso dar o devido crédito pelo ar mais limpo e pela terra úmida. Da cozinha vem o aroma de um ossobuco que comecei a preparar duas horas atrás. Sinto o alho, a pimenta, o bacon. Estou bem acompanhado por um Dolium Escolha 2005, um branco português da uva autóctone Antão Vaz – de onde eles tiram esses nomes? Branco encorpado, untuoso, com pegada, muito melhor em tardes frescas do que nos dias de calor excessivo de verão. No meio de tanta correria, um momento mais relaxado para apenas deixar-se estar e sentir.

Até que lá vou eu pegar o notebook e escrever mais um texto do blog.

Seguindo o que prometi no último post, o assunto da vez é a dificuldade de beber vinhos realmente bons. Não estou falando aqui dos rótulos caríssimos, dos grandes ícones de Bordeaux, Borgonha, Toscana ou Califórnia. Nada disso. Há ótimos produtos que podem satisfazer mesmo os mais enjoados e exigentes sem custar fortunas. Esse Dolium, que sai ali pelos R$ 80 na importadora Adega Alentejana, é prova disso. Eis um branco muito, muito bem feito, com acidez refrescante que chama para o próximo gole, com fruta e madeira convivendo em harmonia, encorpado e refinado. Com o tempo, os aromas cítricos mais evidentes do vinho cedem lugar a um cheiro que lembra curau e milho verde. Delícia. Já tomei Borgonhas quatro vezes mais caros que não tinham essa qualidade. O Dolium não é, com certeza, um dos grandes brancos do mundo. Com três anos, está na hora exata de ser bebido -- acho que não resistiria muito além dos cinco anos de vida. Mas é um vinho que tem um “que” a mais. Tudo funciona, tudo encaixa, e ainda há algo surpreendente, como esse bendido milho verde no nariz.

Ah, como é raro um vinho assim. E como dá satisfação quando, ao primeiro gole, percebe-se que aquela bebida proporcionará um prazer enorme até a última gota.

Recentemente, tomei um punhado de vinhos que considero que têm esse tal “que” a mais, como o Dolium. São rótulos que indico enfaticamente.

Pelo critério custo/benefício, no topo da minha lista está o Double T 2002 (Vinci), da vinícola Trefethen, um californiano fantástico, com força e classe andando de mãos dadas – juntar potência com elegância é, talvez, o critério básico que para mim faz um vinho ser excelente. Esse corte bordalês tem muita fruta vermelha e cassis, com toques de tabaco, chocolate e especiarias – está tudo ali, direitinho. Com o dólar em baixa, sai por pouco mais de R$ 80, o que o torna talvez a melhor oferta nessa faixa de preço em se tratando de vinhos californianos à venda no Brasil.

O espanhol Roda II 2002 (Expand) é uma mistura de Rioja tradicional com moderno. Muita madeira, mas muita fruta também, criando um conjunto harmonioso e irresistível. Impossível não gostar. Sai por R$ 288,00 – é caro, mas é um senhor vinho. O uruguaio Família Deicas Premier Cru Garage 2000 (Expand) é talvez o melhor tinto da América do Sul que já provei. Para mim, ganha de garrafas bem mais badaladas do Chile e da Argentina. Surpreendente do começo ao fim. Custa R$ 285,00, o que o torna igual ou mais barato do que Clos Apalta, Don Melchor, Cobos e outros medalhões que têm bem mais nome e notas de Wine Spectator – e menos qualidades como bebida.

Outros vinhos que tomei algumas vezes e que para mim também são memoráveis incluem o Tarapacá rótulo negro 2001, que parece um ótimo Cabernet Sauvignon californiano e pode ser encontrado por cerca de R$ 85; o Valduero Crianza 2003 (Grand Cru), belo exemplar da região de Ribera Del Duero, vendido em torno de R$ 100; o Quinta do Crasto Vinhas Velhas – as safras 2003, 2004 e 2005 são todas deslumbrantes. Sai por cerca de R$ 120 a garrafa, mas às cegas bate muito vinho de R$ 400 que tem por aí. Também digno de nota é o Charme, do Niepoort (Mistral), um Douro com elegância da Borgonha. Custa ao redor de R$ 300. E vale.

Esses são todos vinhos que tiveram a felicidade de acertar em cheio, pelo menos para o meu gosto, e por isso ficaram gravados na minha memória da melhor forma possível. Nenhum deles está entre os grandes ou os mais caros do mundo, mas estão entre os meus preferidos. Em contrapartida, poderia citar muitos que decepcionaram, mesmo de produtores de altíssimo nível. Certa vez tomei um Angélica Zapata Merlot 2000, da Catena, minha vinícola preferida da Argentina (seus rótulos são importados pela Mistral, mas esse Merlot não vem para o Brasil, foi comprado em Buenos Aires). Era simplesmente um veludo na boca, rendondo, elegante. Há pouco tempo, quando estive novamente em Buenos Aires, comprei outra garrafa, porém da safra 2002 – teoricamente um ano muito melhor em Mendoza. E eis que o vinho decepcionou: estava pesadão, enjoativo, com uma fruta exagerada e grosseira e madeira idem. Pois é, o Catena errou a mão. É raro com um produtor do calibre dele, mas às vezes acontece. A vinícola tinha uma safra melhor para trabalhar, mas aí extraiu fruta demais, usou madeira demais, sei lá... só sei que na safra pior o Angélica Zapata Merlot estava vários degraus acima de qualidade.

Ou posso citar exemplos de vinhos bem-feitos, mas que não têm o “que” a mais que os tornaria dignos de lembrança. O Nottage Hill Shiraz 2005 (Aurora), da Austrália, é uma boa pedida abaixo de R$ 50. Muito macio e prontíssimo para a taça, mas... falta algo. Você bebe, acha bom, mas passa batido. Não encanta, não surpreende, não tem classe. É bem feito, mas é padrão demais, sem nada especial.

Agora vou olhar meu ossobuco, que a noite promete. E escolher o vinho que deve acompanhá-lo, para não correr o risco de ficar sem assunto para o próximo post.