sábado, 13 de outubro de 2007

Na prática a teoria é diferente


Em áreas produtoras tradicionais, os vinhos só podem ser inteiramente compreendidos dentro do contexto que os cerca. Por exemplo: quase sempre os rótulos típicos de uma região e a culinária local harmonizam perfeitamente, porque ambos evoluíram de mãos dadas ao longo do tempo. O clima, os hábitos, os ingredientes disponíveis, tudo explica por que um vinho de determinada parte tem certas características e não outras. Talvez isso não seja mais verdade em tempos de globalização, quando um produtor da Úmbria -- coitado -- tem de pensar no gosto do consumidor americano. Mas antes era assim que funcionava. Por isso os produtos mais tradicionais, que mantêm sua receita inalterada, encerram em si, de certa forma, a síntese de um povo, de uma cultura. Uma pequena aula de história vendida em garrafas, disponível a quem souber ler o que está dito nas entrelinhas -- ou entre goles.

Não é outra a explicação para o tom irritadiço de Jacopo Biondi Santi, um dos nomes mais tradicionais da Toscana, quando tive a oportunidade de entrevistá-lo, há alguns meses. Perguntei o que o produtor achava do crítico Robert Parker, que consistentemente confere notas baixas a seus vinhos -- que, no entanto, são caríssimos, sabidamente longevos (podem durar mais de cem anos) e reverenciados por uma parcela importante dos conhecedores não só da Itália, mas de todo o mundo. Biondi Santi disse que não podia entender como alguém consegue avaliar a fundo um vinho sem pisar no local onde é produzido. “Se algum dia Parker vier nos visitar, talvez compreenda o que fazemos”, disse.

Dei toda essa volta para chegar onde queria. Há alguns dias, participei de uma degustação de vinhos italianos a convite de Sylvio Lazzarini, proprietário do Varanda Grill. Já falei do Varanda várias e várias vezes no meu blog -- gole vai, gole vem, carne vai, carne vem, o Sylvio tornou-se um amigo que divide comigo a paixão por vinhos e gastronomia. A boa notícia é que ele acaba de comprar o estabelecimento contíguo ao Varanda e, a partir do ano que vem, vai transformá-lo no que promete ser um dos grandes restaurantes italianos de São Paulo. A idéia é montar uma casa tradicional, com um número não exagerado de pratos que devem primar pela qualidade dos ingredientes e pela execução. Tive a oportunidade de vislumbrar o que vem por aí. O próprio Sylvio pilotou o fogão, trazendo à mesa uma seqüência de receitas típicas da Toscana, Piemonte e Lombardia.

Os vinhos foram provados junto com as comidas, o que normalmente desrespeita qualquer manual de degustação, mas nesse caso foi de um bom senso incrível. Explico. Os rótulos italianos são freqüentemente espancados em degustações às cegas. Ao lado de Australianos, Californianos, ou mesmo dos grandes Bordeaux, os italianos tradicionais ficam ofuscados porque são mais leves, mais sutis, menos explosivos (note bem, falo dos tradicionais, porque hoje há vinhos italianos para todos os gostos, inclusive grandes campeões de degustações). Acontece que quando a teoria acaba e começa a vida real -- quando a comida chega à mesa --, a coisa muda de figura. As garrafas da velha bota são muitas vezes as primeiras a serem esvaziadas. Que mistério é esse? Não há mistério algum. Apenas a comprovação do que escrevi nos dois primeiros parágrafos. Todo mundo sabe como a comida ocupa um papel central na vida dos italianos de qualquer região. Ora, nada mais natural que seus vinhos sejam desenvolvidos para respeitar -- e melhorar -- a comida. Rótulos superencorpados podem ganhar notas mais altas, mas brigam ou se sobrepõem à maioria dos pratos. Na teoria, os vinhos italianos clássicos nem sempre são bem pontuados. Na prática...

Fecho com um breve parecer sobre as garrafas que degustamos. Confira que beleza:

Vintage Tunina 2004 (Branco, Venezia) – Muito seco, sutil e delicado, foi perfeito para iniciar os trabalhos. Não é propriamente um grande branco, mas o tipo de vinho que não enjoa. Quanto houver, quanto vai. Pena que havia só uma garrafa. Ou seriam duas?

Sassicaia 2002 (Toscana) – Um dos mais clássicos supertoscanos, como são chamados os vinhos produzidos na Toscana com uvas de Bordeaux. A safra foi problemática na região, mas não a ponto de roubar a incrível classe desse rótulo à base de Cabernet Sauvignon. Aromas explosivos e complexos e elegância de sobra na boca.Três detalhes, contudo, denunciam que a mãe natureza não ajudou muito em 2002: falta um pouco de concentração, os taninos apresentam um leve travo verde e o vinho já apresenta sinais claros de evolução, o que não deveria ocorrer tão cedo para um produto desse calibre. Pode não ser um dos grandes Sassicaias, mas ainda assim é um grande vinho.

Collezione de Marchi Cabernet Sauvignon 1999 (Toscana) – Outro supertoscano, este de uma safra excelente. Menos elegante e refinado que o Sassicaia, porém mais encorpado e com muito mais estrutura. Vai longe, pois não apresenta um sinal sequer de evolução. Às cegas, chutei que deveria ser bem mais novo, provavelmente de 2003. Vinhaço.

Gaja Barolo Sperss 1991 (Piemonte) – Absolutamente maravilhoso com uma codorna e polenta. Vinho para comida, sutil, delicado, perfumado por aromas complexos de couro e cogumelos. Já mostra que é um senhor, mas ainda está em boa forma com seus 16 anos.

Elio Altare Barolo Vigneto Arborina 1999 (Piemonte) – Um Barolo mais moderno e encorpado, mas sem perder as qualidades clássicas da região. É dá ótima safra de 1999 (o Piemonte experimentou uma feliz seqüência de grandes anos de 1996 até 2001; depois, 2002 foi um desastre, a exemplo do que ocorreu na Toscana, e as safras seguintes são apenas razoáveis). A Nebbiolo, uva dos Barolos e Barbarescos, é uma das mais caprichosas e difíceis do mundo, ao lado da Pinot Noir da Borgonha. Mas, nos dois casos, quando o produtor acerta a mão, o resultado é de chorar. Esse vinho deixou a mesa em silêncio. Para mim, um dos melhores – se não o melhor – da noite.

La Palazzola Merlot 1999 (Umbria) – Grande vinho, feito 100% com a uva francesa Merlot, que se adapta muito bem na Úmbria e também na Toscana. Envelhecido por 12 meses em barricas francesas de primeiro uso. Exótico, com especiarias, ervas, resina. Quase turvo no copo, mas elegante na boca. Provavelmente foi aberto na hora certa, pois já adquiriu a complexidade do envelhecimento e ainda preserva a fruta. Pede pratos um pouco mais encorpados.

Bertani Amarone Recioto della Valpolicella 1990 (Veneto) – Ótimo exemplar de Amarone, ainda firme apesar dos 17 anos. Os Amarones costumam ser encorpados, pois as uvas são secas para perder água e acumular açúcar antes da vinificação. Geralmente para tomar sozinho em dias frios como “vinho de meditação” ou acompanhando pratos fortes, como ossobuco. Este aqui consegue unir força e elegância, o que o torna divino para a mesa.

Gaja Barbaresco 2000 (Piemonte) – Para mim, o outro candidato a vinho da noite. O Gaja é considerado o rei do Barbaresco e 2000 foi talvez a melhor safra da história recente do Piemonte. Como poderia dar errado? Não deu mesmo. Dizer que respeita a comida é pouco; essa obra-prima melhora a comida. Se alguém quiser entender o significado da palavra elegância, um gole desse Barbaresco será a lição mais didática que consigo imaginar. Um vinho feminino -- uma mulher de longo. A sedução em 750 ml. Faz sonhar e deixa uma sensação de vazio quando vemos que está indo embora. Traio qualquer outra garrafa com essa aqui. (Mas como uma verdadeira estrela de cinema, esse vinho também tem um problema sério: não é muito acessível. Custa 1 200 reais.)

Passito di Panteleria Ben Rye Donnafugatta 2004 – Ótimo vinho de sobremesa, lembrando caramelo queimado com cravo e casca de laranja. Untuoso, rico, enche a boca. Uma delícia. Combina com sobremesas não muito doces de cremes e frutas (não com chocolate), mas pode fechar brilhantemente uma refeição sozinho.