quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Simplicidade



Há pouco, quando eu ainda estava na redação da revista Exame, um grupo de colegas combinava de dar uma esticadinha num bar após o expediente. Ao me ver por ali, um deles convidou: “Vamos lá tomar uma cerveja?”. Ao que outro emendou: “Ah, então temos que pensar em um lugar de melhor nível para nosso happy hour. Um sommelier não pode ir a um boteco”. Era uma brincadeira, porque quem me conhece sabe que adoro um botequim, um churrasco, uma cerveja na praia com os amigos e todas essas coisas simples que são tão boas, principalmente se a companhia é boa também. Rimos da tirada e lá fomos nós para um barzinho tomar chope e comer porções de fritura – e viva a “baixa gastronomia”, ô maravilha!


Mas a frase em questão, mesmo nesse caso sendo apenas um sarro entre colegas, revela qual o estereótipo que as pessoas têm sobre o vinho: um produto elitista. Não deveria ser assim. Nas regiões produtoras tradicionais da França, Itália, Espanha e Portugal, por exemplo, essa bebida sempre foi e continua sendo popular. Todos consomem, como por aqui qualquer bom brasileiro toma sua cervejinha. Em muitos lugares, o vinho é considerado um alimento – é indispensável nas refeições, e tanto à mesa do rico quanto à mesa do pobre.


Tampouco existe no mais antigo e caro de nossa tradição cristão ocidental algo que sugira que essa bebida deveria ser um produto das elites. Bem ao contrário. No Novo Testamento, na ceia em que Cristo despediu-se de seus apóstolos, ele repartiu o pão e serviu o vinho em sua memória. Pão e vinho eram o que de mais simples e despretensioso poderia haver. Um ritual que seus seguidores, mesmo os mais humildes, poderiam repetir. Na passagem das bodas de Caná, o primeiro milagre de Cristo foi transformar água em vinho para que todos – não alguns escolhidos – continuassem bebendo e festejando.


Então de onde vem esse conceito elitista? Talvez porque os negros e índios, dois dos pilares básicos da brasilidade, nunca tiveram no vinho um elemento de sua cultura. O hábito de consumo sempre se restringiu aos descendentes de europeu – exatamente a antiga elite do país. Por aqui o vinho era importado, caro, e restrito a poucos. Talvez essa seja a razão histórica, suponho. Mas há também uma razão contemporânea. A atual moda enófila no Brasil veio acompanhada de toda uma babaquice empolada que não contribui em nada para aproximar as pessoas dessa bebida. Um linguajar supostamente técnico, comparações esdrúxulas com aromas de outro planeta, rituais esotéricos que os não-iniciados sentem que só aprenderiam com décadas de estudo. E, bem, não é nada disso.


Há de fato um bocado de coisas a aprender sobre o mundo dos vinhos. Só que as pessoas que fazem questão de transformar essa bebida em algo esnobe tornam tudo mais complicado. Não é para ser difícil, é para ser um aprendizado gostoso. Se não, qual o sentido disso? Um exemplo do que estou falando aqui são as clássicas analogias dos aromas com frutas, flores, terra, madeira, cravo, resina, couro molhado etc. etc. etc. Esse é um recurso que surgiu na Europa para simplificar – veja bem, simplificar – a explicação de como é um determinado rótulo para alguém que nunca o experimentou. Daí esse artifício, que acho completamente válido. Por isso um vinho tem aromas de cassis, ou de frutas vermelhas, ou de frutas negras, ou de cedro, ou de trufa. No Brasil, essa técnica chegou distorcida. Usa-se a analogia com frutas e alimentos que não fazem parte do dia-a-dia das pessoas, por isso não explicam nada. Dá a impressão de que a lista de aromas contidos numa taça é uma caixa preta que só os especialistas têm a chave para abrir.


Minha idéia original era fazer um post com dicas de rótulos para a ceia de Natal e de Ano Novo. Mas reconsiderei. Desta vez, ao invés de indicar qual a garrafa certa para essa ocasião, preferi sugerir o espírito certo. Aproveite o vinho com simplicidade e alegria. No fundo, o vinho é só isso: uma bebida para ser compartilhada com as pessoas que você gosta. Assim qualquer garrafa fica grandiosa.


Para fechar, copio aqui um antigo post que fiz. Acho que explica bem o que quero dizer.


A todos, um feliz Natal.

...


O espírito da coisa


Tomei um dos melhores vinhos do mundo. Não, não me refiro ao Château Cheval Blanc, um dos premier grand cru classé de Bordeaux, ou ao lendário Barca Velha, de Portugal -- dois ícones que degustei recentemente na Expovinis. Falo de outra coisa.


No último fim de semana tive o prazer de conhecer a cantina Roberto Tatini, escondida na cidadezinha de Sapucaí Mirim, no Sul de Minas Gerais, quase divisa com São Paulo. Fica a um pulo de Campos do Jordão ou de Santo Antônio dos Pinhais, destinos automáticos dos turistas paulistas tão logo os termômetros acusam alguns graus a menos. Mas pouca gente que visita a região da Serra da Mantiqueira espicha o passeio até lá, porque Sapucaí Mirim, coitada, não tem sombra do charme -- muito menos da infra-estrutura -- de suas vizinhas mais requintadas.

Tampouco é o primeiro lugar que vem à mente quando se pensa em uma boa comida italiana. Ou em boa comida de qualquer tipo, salvo, vá lá, caipira. Ainda mais que a cantina não está no centro de Sapucaí Mirim. Está na periferia. Enquanto dirigia por ruas de terra cercadas de pastos ou de esparsas casas em construção, comecei a desconfiar que a indicação que tive (acho que é só assim, no boca a boca, que Tatini consegue sua clientela) para ir lá era uma roubada. Não era. Mesmo chegando às 15h30 e sem reserva (o que não é recomendado), eu e minha esposa, Raquel, fomos recebidos com um sorriso cordial por Roberto Tatini, sua esposa e as duas filhas pequenas. Há oito anos Roberto largou sua cantina de São Paulo e foi viver ali. Largou São Paulo, bem entendido. A cantina, felizmente, foi com ele. Visitamos a cozinha. Tudo simples, velho, bagunçado -- e adorável. Panelas empilhadas por lavar. Um pão recém-assado perfumava o ambiente. Já estávamos prevenidos de como a coisa funciona. Não há cardápio. Roberto serve o que estiver cozinhando no dia e cobra 50 reais por pessoa. Pedi a carta de vinhos. Não havia, ou Roberto não quis trazer. "Tome este, você vai gostar", disse, abrindo uma garrafa de um toscano simplezinho, simplezinho.


Numa degustação, que nota teria aquele vinho? 83 pontos? 85? Não importa. Mas não importa mesmo.Ali, era o melhor que podia haver. O vinho harmonizava, para usar o termo dos sommeliers. Mas não só com os pratos. Harmonizava com a taça de vidro igualmente simples, com a mesa de madeira rústica, com a ampla casa de telha vã e tijolo aparente. Com o cheiro de tempero que vinha da cozinha. Com a vontade de dar uma desligada de e-mail, de celular, da correria e até da pretensa sofisticação que a vida em São Paulo -- ou em qualquer grande cidade -- costuma ter. Veio a comida. Primeiro, o pão feito ali mesmo com um antepasto de pimentão. Mais um instante e aparece Roberto com um punhado de temperos que foi apanhar no quintal. Depois, uma massa verde com queijo mascarpone e presunto cru. Coisa séria. Um talharine à bolonhesa. Um cordeiro, comprado de alguém que cria na região. Tudo bem?, preocupa-se Roberto. Que dizer? Talvez dar uma nota, como os especialistas gostam de fazer com os vinhos. Então lá vai: de zero a dez, nota mil. E o toscaninho escoltando a comida -- comida grandiosa porque simples, honesta. É isso que se espera de uma cantina, suponho. Mas, desculpe o preconceito, é bem mais do que eu esperava de uma cantina naquele quase fim-de-mundo.

Gostamos tanto que voltamos para jantar no dia seguinte com um casal de amigos que encontramos por acaso em Santo Antônio do Pinhal, Alexandre Teixeira e Gabi. Dessa vez levamos os vinhos, porque descobrimos que Roberto não cobra rolha. Não vou entrar em detalhes, mas todos aprovaram a ceia.


Além de indicar um lugar bacana, este post tem, como já deve estar claro, uma moral. O vinho e a comida devem ser entendidos como uma experiência completa. O contexto, o ambiente -- isso conta. Sorte de quem sabe assimilar o espírito de cada ocasião. Não teria gostado daquele toscano se estivesse num restaurante caríssimo de São Paulo. Nem das taças. Mesmo a comida ficaria deslocada. Mas ali, naquele lugar, fazia todo sentido. Há ocasião para o requinte e ocasião para a simplicidade. Note bem: simplicidade. Simples não quer dizer ruim. São coisas bem diferentes. Quem não sabe disso perde. Quem sabe terá um prazer gastronômico que é negado aos esnobes, por mais dinheiro que tenham.


Gastei poucos reais. E tomei um dos melhores vinhos do mundo. Entendeu o espírito da coisa?

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Um casamento turbulento


Quem não gosta de queijo? Melhor dizendo: quem não ama queijo? Esse alimento tem tantas variantes que é praticamente impossível não encontrar algumas que sejam irresistíveis a seu paladar. Para o meu, há dezenas e dezenas. Na cabeça de muita gente, pensou em queijos, pensou em vinho... tinto. Isso não está necessariamente errado, mas tampouco é uma verdade absoluta. O propósito deste post é, por um lado, ampliar o horizonte de harmonizações com esse maravilhoso laticínio; e, por outro, mostrar que o casamento entre queijos e vinhos é uma relação bem mais complicada do que reza o senso comum.

Um recente artigo na revista de domingo do jornal New York Times vai a fundo na questão. O ponto central do texto é que queijos são muito mais fáceis de combinar com brancos do que tintos. Para o autor, Florence Fabricant, o hábito de tomar tintos com queijos é uma herança ultrapassada de antigos costumes europeus. "Minha teoria pessoal é que a fixação por vinhos tintos com queijo é um conceito inglês victoriano. Os jantares em que mulheres participavam eram servidos com vinhos brancos, geralmente riesling. No final da refeição, os homens se retiravam para a biblioteca para beber vinhos tintos e porto com queijos, nenhum dos quais eram considerados apropriados para as mulheres."

Pode ser, embora até onde eu saiba o vinho do Porto sempre tenha sido apreciado e consumido pelas mulheres, ao menos no Brasil. Ainda no mesmo artigo, Fabricant conta que Aubert de Villaine, proprietário do mítico Domaine de la Romanée-Conti, invariavelmente prefere um branco poderoso, como o seu Le Montrachet, com queijos. Não apenas por achar que combina melhor, mas também por considerar que muitos laticínios prejudicam seriamente a percepção dos gostos dos tintos. "Não quero meus grandes vinhos arruinados por queijo", Villaine diz na reportagem. Vindo de quem vem, essa é uma declaração forte. Um estudo feito pela Universidade da Califórnia parece dar razão com base científica ao que o francês defende por puro bom gosto. Dois meses de pesquisas de análise sensorial com voluntários em um painel envolvendo oito queijos e oito tintos mostrou que essa mistura mais suprime do que melhora a percepção dos sabores dos vinhos. É a anti-harmonização, porque no casamento perfeito de bebidas e comidas o que se busca é que um melhore a percepção do outro.

Então vinho tinto não combina com queijo? Não, não, não. Nada disso. A resposta para essa pergunta é que é preciso selecionar o rótulo certo para cada tipo de queijo. Caso contrário, ou estraga-se a bebida ou o prato. Sabendo escolher, existem diversos tintos que harmonizam bem com muitos queijos. Mas, sim, muitas vezes é mais fácil achar um branco para esse tipo de comida.

Aqui vale a mesma regra que rege qualquer compatibilização de bebida com alimentos. Um não deve se sobrepor ao outro. Queijos bem encorpados, como um belo parmesão, podem combinar com tintos, e até com tintos encorpados, como um Amarone -- para ficar tudo na Itália --, por exemplo. Na média, contudo, tintos mais leves e com menos taninos, como Beaujolais e alguns pinot noirs, são mais fáceis de combinar.

Já os queijos azuis, tipo Gorgonzola, matam qualquer tinto. Eles devem combinar com vinhos doces de sobremesa ou fortificados como Porto e Madeira. É a chamada harmonização por contraste. Para quem é novato no mundo da enofilia parece estranho, eu sei, mas isso é comum na gastronomia. Pense no corriqueiro “Romeu e Julieta”, a nossa goiabada com queijo. É o mesmo princípio. E o próprio apelido dessa mistura popular sugere um caso de amor entre os opostos. Tome coragem e faça o teste. A primeira vez em que deixei um Roquefort derreter na língua e em seguida enchi a boca com um gole de Sauternes foi como ter uma iluminação. Imediatamente percebi que o mundo era um lugar melhor do que eu supunha até então.

Num recente texto sobre o assunto (A Wine and Cheese Extravaganza) em seu blog, Eric Asimov, o crítico de vinhos do jornal New York Times, conta sobre um evento beneficente de harmonização que ele comandou com seu amigo David Grotenstein, um negociante de laticínios nos Estados Unidos que é membro da American Cheese Society (Sociedade Americana do Queijo). Coube a Eric escolher seis vinhos e a David selecionar meia dúzia de queijos que deveriam harmonizar com as garrafas eleitas. O blogueiro do NY Times optou por um espumante, dois brancos, dois tintos e um vinho de sobremesa. Os queijos foram todos americanos -- para quem não sabe, hoje os Estados Unidos produzem queijos excelentes, a exemplo do que fazem também com os vinhos.

Aqui vai um resumo da história. O espumante era um champanhe simples, o Ployez-Jacquemart, bastante seco e com toques cítricos. Para acompanhar, foi escolhido o Truffle Tremor, um queijo de cabra trufado. Não é porque o próprio Eric Asimov conta em seu texto que a harmonização não funcionou que vou dizer aqui que isso não poderia dar certo. Mas a verdade é que não poderia mesmo. Trufa é algo poderoso demais, que domina o olfato e o paladar. Como um espumante simples poderia resistir? Aqui teria de ser um grande branco da Borgonha ou um chardonnay top de linha do Novo Mundo com já alguns anos nas costas. Ou mesmo um tinto da Borgonha envelhecido, quem sabe. Mas o propósito do evento era ficar em vinhos relativamente baratos, até 30 dólares, e nesses termos a harmonização com um queijo trufado não é das mais fáceis. A segunda compatibilização foi um Muscadet (um vinho branco) com um queijo de ovelha. Eric achou perfeito. Depois, o Bodegas Gurrutxaga, um txakoli, um branco da região basca. Com apenas 10,5% de álcool, esse vinho tem acidez vibrante e delicadeza para harmonizar com um queijo tipo Camembert.

Em seguida, os tintos. O Touraine Clos Roche Blanche 2006 é feito com gamay, a mesma uva dos Beaujolais. Portanto, um produto mais leve e frutado. Harmonizou com um queijo tipo alpino de leite de vaca. Eric diz que funcionou. Confesso que não fiquei convencido. Um Crozes-Hermitage 2006 de Jean-Claude Marsanne, do Vale do Rhône, escoltou um queijo forte e encorpado. Aí já faz mais sentido. Por fim, um Rivesaltes vin doux naturel from Domaine de Rancy de quatro anos de idade, um vinho de sobremesa que lembra um pouco um Madeira, acompanhou um queijo azul forte, aparentemente com grande sucesso.

Bom, e aí a pergunta óbvia: o que fazer diante de uma tábua com cinco, seis, dez tipos de queijos diferentes? A primeira coisa é se conformar e aceitar que, se for abrir uma garrafa só, você não poderá jamais harmonizar a bebida com todos os queijos. A solução é procurar um vinho que pelo menos combine com um ou dois e não brigue com os demais. Minha primeira opção iria para um branco bem encorpado. Minha segunda, que provavelmente seria a primeira se além de queijos houvesse também frios (embutidos, salames, presuntos etc.) à mesa, seria um tinto leve como um cru de Beaujolais. A última regra: separe o queijo azul para o final e se possível abra uma garrafa de vinho de sobremesa para acompanhá-lo -- depois dele, você não sentirá o gosto de mais nada. Ou desista de tudo isso e tome uma cervejinha bem gelada com um "rococó" de copa com gorgonzola... nenhuma bebida iria melhor, para horror dos sommeliers esnobes de plantão que desprezam o prazer das coisas simples.

Todo mundo ama queijo e todo mundo ama vinho, mas queijo e vinho nem sempre se amam da forma como as pessoas imaginam. Esse tem sido um casamento de fachada, bem menos harmônico do que as aparências sugerem.

sábado, 8 de dezembro de 2007

Tempo de brancos

Termômetros subindo, dias cada vez mais longos, temporais ao final das tardes e um monte de mosquitos infestando São Paulo, ao menos aqui na minha casa, na zona Oeste da cidade. Pois é. Já dá para sentir no ar que o verão vem aí, com tudo o que traz de bom e de ruim. Clima que deveria repelir os enófilos tanto quanto atrai os pernilongos, certo? Errado, erradíssimo. Há sempre um tipo de vinho para cada ocasião. Ou, nesse caso, vários tipos. É tempo de brancos, de rosés e de espumantes. E é tempo de os brasileiros aprenderem a apreciar outros gêneros dessa bebida além dos onipresentes tintos, que representam nove em cada dez garrafas de qualidade vendidas por aqui. Incrível que até no Nordeste do país, onde faz calor e sol o ano todo e os frutos do mar são a base da boa culinária, consome-se muito mais tintos do que brancos. Não faz sentido algum.

Os brancos têm diversas vantagens no verão. Ser servido frio é apenas a primeira delas. Mas atenção: ao contrário de nossa cerveja, os vinhos não devem estar gelados demais, ou boa parte de seu sabor se perderá. A temperatura não pode ficar abaixo de uns 8 graus para os exemplares mais leves ou simples, algo que sem dúvida os cervejeiros considerariam quente demais. E os produtos mais ricos e encorpados devem ser servidos até a cerca de 13 graus. No caso do fermentado de uvas, o termo “estupidamente gelado” é literal. Quem tomar um grande Mersault da Borgonha a 1 ou 2 graus de temperatura vai perder seus aromas explosivos, pois a essa temperatura o vinho está “fechado”, e não sentirá boa parte de seu sabor.

Duvida? É só fazer a experiência. Coloque um pouco de um bom branco que está na sua geladeira, portanto a uns 5 ou 6 graus, em duas taças. Leve uma delas ao congelador por 15 minutos e deixe a outra em cima da mesa pelo mesmo tempo. Depois sinta o cheiro e dê um gole de cada uma delas. O vinho que ficou de fora estará a uns 10 ou 12 graus e mostrará todos os seus aromas e sabores. O que estava no freezer terá perto de zero grau e vai ficar quase insípido e inodoro. Basta um Chardonnay simples da Argentina ou do Chile para fazer esse teste, mas quanto melhor o produto, mais gritante será o contraste. Na verdade, se a experiência for feita com dois brancos – um muito bom e outro bem simples – a coisa fica ainda mais interessante. Será fácil, mesmo às cegas, descobrir qual é o rótulo bom e qual o vagabundo entre as taças que ficaram fora do congelador. Mas as duas que estão a quase zero grau terão praticamente o mesmo cheiro e o mesmo gosto – quer dizer, nenhum. Conclusão: a melhor forma de jogar seu dinheiro fora é comprar um glorioso branco de 500 reais e tomá-lo “estupidamente gelado”. Ele vai ficar muito parecido a um produto de 9,90 reais.

A outra vantagem dos brancos é a perfeita harmonização com refeições leve, diversos tipos de salada, carnes brancas em geral, peixes e frutos do mar. O tipo de comida que as pessoas procuram no verão e, cada vez mais, o ano inteiro. Mas o que muita gente não sabe é que os brancos casam muito bem com outros alimentos como, por exemplo, uma tábua de queijos. Na verdade, combinam melhor com queijos do que a maioria dos tintos. Surpreso? Incrédulo? Não acredite em mim, faça o teste. Outro dia abri uma garrafa do Catena Alta Chardonnay 2004, o melhor branco do melhor produtor da Argentina. Está no auge, perfeito para ser bebido neste verão. Um vinho untuoso, rico, com aromas amanteigados que são típicos de chardonnays que sofrem a chamada fermentação malolática, um processo que transforma o ácido málico em ácido láctico, o mesmo presente em laticínios. Experimentei o Catena Alta com um queijo brie. Nenhum tinto harmonizaria melhor. O queijo é delicado e o vinho branco respeita isso e não se sobrepõe ou domina o palato. A acidez do chardonnay corta a gordura excessiva do brie, enquanto os sabores provenientes da fermentação malolática encaixam com o amanteigado do queijo como uma porca ao seu parafuso. É exato.

Por que não uma tábua de queijos – ou massas com queijo, tortas, quiches etc. -- com vinhos brancos fortes, como tantos chardonnays que lotam as prateleiras de importadoras e lojas especializadas? Da mesma forma, é possível fazer harmonizações interessantes com espumantes mais encorpados, que podem acompanhar refeições inteiras ao invés de apenas iniciar os trabalhos. Tomei recentemente o Brut Millésime 2004 da Miolo, que também está no ponto para ser consumido agora. Os espumantes nacionais são bons e esta garrafa estava deliciosa. Iria bem com uma mesa de queijos, frios mais delicados (nada de salame ou copas condimentadas) e pães. Como este Brut Millésime tem os aromas de leveduras comuns a tantos espumantes, a compatibilização com pães e torradas é óbvia. Vá nessa, sem medo de ser feliz.

Recentemente, tomei ainda dois vinhos absolutamente contrastantes entre si que mostram como há imensa variedade de estilos e propostas entre os brancos. O chardonnay chileno Sol de Sol 2003, da vinícola Aquitania, esteve à altura da fama de melhor branco da América do Sul. Apesar de caminhar para o quinto ano de vida, apresentava poucos sinais de evolução -- algo raro nos brancos do Novo Mundo, que geralmente devem ser consumidos logo. O equilíbrio entre a acidez, a fruta e a madeira estava perfeito. Um vinho rico e exuberante, mas ao mesmo tempo refinado. Já o Clos du Papillon Domaines de Baumard 2002, um exemplar do Vale do Loire feito com a ótima uva chenin blanc, é seco, austero e mineral até o osso. Aqui não há nada de amanteigado. Estilisticamente é um vinho de guarda, que vai longe. Reservado ao nariz, mas encantador na boca, imagino que deve casar muito bem com ostras cruas, para quem gosta, ou mariscos feitos sem molhos fortes. Esses franceses sabem das coisas.

Você não consegue impedir que o verão traga nuvens de mosquito sobre São Paulo e que os temporais tornem o trânsito da cidade ainda mais caótico. Mas ninguém precisa se privar de bons vinhos só porque os termômetros estão acima de 30 graus. É tempo de brancos, afinal.

PS.: o Catena Alta e o Domaines de Baumard são da importadora Mistral; o Sol de Sol é vendido pela Zahil, que incorporou a antiga Wine House.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Ainda falta chão


É verdade que a qualidade média do trabalho com vinhos nos restaurantes subiu consideravelmente nos últimos anos. Melhoraram as cartas, as taças, o conhecimento dos garçons e, pasmem, até os preços. Feito o devido registro, vamos ao lado ruim da história: muita coisa evoluiu, mas partindo de uma base fraca. Se hoje estamos melhores, ainda não estamos bem. Falta chão, e como falta, para que beber dignamente fora de casa, em se tratando de vinhos, seja algo corriqueiro na cena gastronômica paulista, carioca e de outras capitais. Do resto do Brasil, então, nem se fala.


Tive a perfeita medida disso há cerca de duas semanas, quando fui jantar no AK Delicatessen, cujo nome vem das iniciais da jovem chef Andrea Kaufmann. É um bistrô muito interessante no bairro paulistano de Higienópolis, que serve comida internacional com sotaque judaico. E que comida: criativa, executada com perfeição, muito saborosa e ainda por cima bem servida -- esse negócio de ir a restaurante para passar fome não é comigo. Uma culinária contemporânea sem ser afetada ou metida a besta. Bom desde os pãezinhos de entrada (tenho a tese de que é possível adivinhar a qualidade do restaurante só pelos pães; quando esse começo é ruim – pão frio, pouca variedade etc. – é porque o estabelecimento não presta atenção aos detalhes, o que vai afetar todo o resto da experiência) até a sobremesa. Pedi um medalhão gratinado com queijo brie. Delícia. O fato é que o AK estava muito bom. Estava. Até chegar o momento do vinho.


A carta é pequena, mas esse não é o principal problema. Não sou contra cartas relativamente enxutas, desde que bem montadas. Para isso, basta que traga opções em diferentes faixas de preços e escolhas inteligentes, que dialoguem com o menu da casa e, se possível, surpreendam. Com uma dúzia de rótulos já é possível fazer isso. O problema de fato começava no preço. Pedimos um Passo Doble, um vinho elaborado em Mendoza, na Argentina, pelo consagrado produtor italiano Masi, um dos papas do Vêneto. Um inusitado corte das uvas corvina (usada no Amarone) e malbec. Trata-se de uma opção bem sacada numa faixa de preço baixa. Só que esse vinho custa 37 reais na importadora, a Mistral, e no AK estava por 90 reais. Considerando que todo restaurante consegue de 15% a 20% de desconto sobre o preço do catálogo, conclui-se que o bistrô pratica uma margem de exatos 200% sobre essa garrafa.

Sinceramente, acho que o amante de vinho bem informado não pode mais aceitar esse tipo de coisa. Margens extorsivas revelam uma mentalidade ultrapassada, resquício da era pós-abertura de mercado, em que a importação de vinhos era limitada e o conhecimento dos consumidores quase nulo. É justo que o restaurante tenha seu lucro. Afinal, beber vinho num estabelecimento charmoso e de boa comida não é igual tomar em casa. É justo que cobre pelo serviço. É justo que cobre uma taxa de rolha também, se o cliente quiser trazer sua garrafa de casa. Mas triplicar o preço não é justo nem razoável. Para quem conhece o valor do produto, é impossível não se sentir meio otário.


O grand finale, porém, veio quando pedimos vinho de sobremesa em taça. Primeiro, deixe-me louvar o fato de o AK não apenas ter essa opção, que todo restaurante razoável deveria oferecer, como ainda por cima contar com alguma variedade. É possível escolher entre um vinho de sobremesa chileno, um sauternes e um tokaj simples. Muito bem. Só que quando chegou a taça... que vexame. Era uma tacinha minúscula, de três goles, apropriada para um licor ou grapa, mas nunca para um vinho. Numa cantina italiana simples e tradicional, dessas que São Paulo tem às pencas, eu perdoaria um erro desses tranquilamente. Ninguém entra numa cantinona do Bixiga esperando sofisticação, mas sim comida saborosa, honesta, farta, barata e sem frescuras. Num restaurante que se propõe moderninho – e que está longe de ser barato -- como o AK, contudo, não dá para engolir esse tipo de coisa.

Peguei o AK para Cristo, como dizem, porque achei esse bistrô emblemático da atual fase de transição da cena gastronômica paulista. O AK acerta por ter algumas boas opções na carta e taças apropriadas para tintos. Mas escorrega legal nos preços praticados e na taça dos vinhos de sobremesa. Tem um pé no atual e outro no atraso. Só para colocar um contraste neste texto, fui ontem novamente ao “Vino!” – mais do que um wine bar, é um wine restaurant. Ali é possível escolher entre ótimas opções de rótulos com preços iguais aos das importadoras e tomar à mesa. A comida é boa, não excelente (nesse quesito fica abaixo do AK, por exemplo). Mas o vinho, para quem gosta, faz a festa. Tomei o Wallace Shiraz-Grenache 2005, do excelente produtor Ben Glaetzer, uma das estrelas ascendentes da Austrália. Esse cara faz coisas sérias. O Wallace é um produto moderno, muito bem feito, daqueles que trazem a potência que se espera dos rótulos australianos sem abrir mão de uma certa elegância. Tem 93 pontos do crítico Robert Parker, e paguei no Vino! exatos 95 reais, o mesmíssimo preço pelo qual é vendido na importadora Grand Cru.

O Vino! é um caso à parte, porque, como o próprio nome evidencia, toda sua proposta está montada sobre essa bebida. Mas não é preciso chegar a tanto. Veja o exemplo das boas casas de carne, sem dúvida os estabelecimentos que mais avançaram no tratamento dispensado aos vinhos em São Paulo. Rubaiyat, Varanda Grill, Fogo de Chão, Bassi e vários outros contam com adegas climatizadas, cartas amplas e preços mais do que honestos, bem próximos aos praticados pelas importadoras. Esse gênero de restaurante vem elevando o patamar de tratamento aos vinhos. Que isso se espalhe para os italianos, franceses, bistrôs, árabes...

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Um mundo à parte


Ah, a Borgonha. A Borgonha é outra história. Semana passada fui convidado para uma degustação dos vinhos da Domaine Jacques Prieur, propriedade (foto acima) localizada na nobre região francesa, que passam a ser importados no Brasil pela Casa do Porto. E é isso: os parâmetros de quem formou seu paladar experimentando produtos de qualquer outra parte – estou incluindo aí até mesmo as conterrâneas Bordeaux e Rhône – devem ser esquecidos quando temos essas garrafas pela frente. Os parâmetros sobre o que é caro e barato, também. Ali é um mundo à parte.

Todos os brancos da Borgonha são 100% chardonnay, indiscutivelmente os melhores do mundo com essa casta. Todos os tintos levam apenas pinot noir, igualmente os campeões dessa variedade. Por aí já começa a diferença com o restante da França, sobretudo Bordeaux, onde a regra são vinhos de “corte”, como se chama a mistura de diferentes uvas. Trabalhar com cortes é uma arte, mas é também uma vantagem. Como cada variedade amadurece numa época diferente, os produtores bordaleses alteram a porcentagem das castas empregadas no produto final ano a ano, aumentando a participação daquelas que foram colhidas nas melhores condições em cada safra. Na Borgonha isso não é possível. Se o ano foi ruim para pinot noir, é preciso fazer malabarismos para que a qualidade da bebida não se deteriore demais -- o que nem sempre dá certo, diga-se. Detalhe: a pinot noir é uma das castas mais sensíveis e caprichosas que existem.

Depois, o preço. A Borgonha é uma área relativamente pequena e composta por um mosaico de minúsculas vinícolas. Cada uma produz em quantidade bem limitada. Hoje existem os grandes negociantes que engarrafam as uvas de vários produtores associados, mas ainda assim com volumes mais ou menos modestos. Todo mundo sabe que a fórmula “muita demanda + pouca oferta = preços estratosféricos” é sempre verdadeira numa economia de mercado. O desejo e o glamour gerado por ícones como o Romanée-Conti só servem para elevar essa equação ao quadrado. E haja dinheiro. É por isso que na lista dos 100 melhores vinhos do mundo que a revista americana Wine Spectator publica anualmente (veja o último post, abaixo), a Borgonha nunca é destaque. Como a publicação considera o critério de custo/benefício, não poderia ser diferente.

Mas talvez a maior singularidade esteja na estrutura de aromas e sabores dos rótulos da Borgonha. É preciso educar os sentidos para aprender a apreciá-los. São vinhos para iniciados. Os tintos são delicados, misteriosos, exóticos, intrigantes. Ótimos para acompanhar caças pequenas, como aves, e muitos pratos à base de cogumelos. Os brancos podem ser minerais como os Chablis ou gloriosos e exuberantes como os Mersault e os Montrachet.

Chega um momento na estrada da enofilia em que o sujeito se depara com a Borgonha. Então um mundo inteiramente novo se abre. Um mundo de aromas e sabores inéditos. E geralmente um mundo com déficits igualmente inéditos na conta bancária.

Não há mundo perfeito, afinal.

Fecho com um breve parecer dos vinhos da Domaine Jacques Prieur.

Clos Mathilde 2004 – um branco simples e barato para os padrões da Borgonha: sai por 99 reais. É interessante para quem quiser começar a conhecer essa região sem gastar fortunas. Ótima acidez, como muitos brancos da Borgonha dessa safra.

Mersault Clos de Mazeray 2004 – aqui a coisa começa a fica séria. O preço vai acompanhando: essa garrafinha sai por 327 reais. Na escala da Borgonha, pode-se dizer que é um bom custo/benefício. Profusão de flores brancas no nariz e acidez vibrante na boca.

Puligny-Montrachet les Combettes 2003 – Cremoso, untuoso, amanteigado – mas falta um pouco de acidez, um defeito comum em brancos de uma safra tão quente.

Beaune Champs – Pimont 1999 (branco) – Com oito anos de vida, ainda está divino. A safra não foi fácil, mas o produtor, Martin Prieur, explicou-me que um rigoroso trabalho de manejo nos vinhedos garantiu esse resultado.

Beaune Champs – Pimont 2002 (tinto) – Safra excelente na Borgonha, que resultou num tinto de ótima qualidade mesmo a um preço não dos mais exorbitantes. Aromas complexos que lembram alguma coisa de derivado de petróleo (gás, querosene) ao fundo. Na frente, fruta e mais fruta. Uma delícia.

Clos de Vougeot 2001 – Um tinto grand cru, vai no mesmo diapasão do Beaune Champs, mas é ainda mais exótico. Só faltou um pouco de fruta. Vinho para comida.

Echezeaux grand cru 2001 – Ainda fechado, compacto, mas com enorme estrutura na boca. Deixe descansar na adega mais alguns aninhos para que esse rótulo possa mostrar tudo o que tem.

Musigny grand cru 2001 – Punho de ferro em luva de veludo – e põe veludo nisso. Um vinho encorpado, mas com taninos sedosos. Aromas que evocam terra molhada, cogumelo, petróleo, frutas e rosas. Um parque de diversões olfativo. Brincadeira sem fim para qualquer enófilo.

Montrachet Grand Cru 2001 – Esse branco é tão poderoso que foi servido por último, após todos os tintos, o que não é muito usual. Foi a atitude correta: ele fala mais alto que qualquer rótulo anterior. Flores brancas, frutas exóticas e cítricas, mel e trufas misturam-se e explodem no nariz. Um elixir inebriante que é preciso beber para crer. O retrogosto dura minutos – a sensação olfativa e gustativa não arrefece. Um sonho de vinho. A gente só cai da cama quando vê o preço da garrafa: essa jóia líquida custa a bagatela de 2 800 reais.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Top 100


E saiu a edição de 2007 dos top100 da Wine Spectator, a lista dos melhores vinhos do mundo na opinião da influente revista americana. Por melhores, entenda-se não apenas os produtos que ganharam as maiores notas, mas os que apresentaram equilíbrio entre pontuação, preço, disponibilidade no mercado americano (um critério que, portanto, não serve para o Brasil) e a capacidade de surpreender os críticos da publicação. Claro, qualquer ranking desse tipo está sujeito a muitas contestações. Há vinhos ali que eu não incluiria e outros tantos que simplesmente não consigo entender por que ficaram de fora do levantamento. Pode-se desconfiar que critérios econômicos pesaram mais do que os técnicos na escolha dos campeões. Pode-se desconfiar que depois de destacar uma vinícola num ano, a revista prefere dar a vez a outros produtores (produtores = anunciantes) na lista seguinte. Pode-se desconfiar que o gosto de algumas pessoas que trabalham lá talvez não seja tão apurado quanto deveria. Pode ser. Mas criticar a Wine Spectator é tarefa fácil, que muita gente faz – estou me incluindo aí. Desta vez quero chamar atenção para o lado positivo da lista.


Veja só: dos 100 rótulos destacados este ano, nada menos do que 59 custam 35 dólares ou menos – um preço bem razoável por aqui (cerca de R$ 60) e ainda mais razoável num mercado de maior poder aquisitivo, como os Estados Unidos. Alguns são verdadeiras pechinchas, como o Bodegas Borsao Garnacha Campo de Borja Tres Picos 2005, que sai por 12 dólares (20 reais), ou o Columbia Crest Merlot Columbia Valley Grand Estates 2004, por 11 dólares. Merece aplausos uma lista que destaca produtos acessíveis, não apenas os ícones de preço absurdo. Bem melhor assim.


Mesmo o grande campeão do ranking – o Clos des Papes Châteauneuf-du-Pape 2005 – tem um preço para lá de realista: 80 dólares. Sei que esse valor pode ser considerado alto para muita gente, mas estamos falando de um vinhaço, que flerta com a perfeição (mereceu 98 pontos). No geral, os dois produtos mais pontuados este ano foram o champanhe Krug Brut 1996 (99 pontos, 250 dólares) e o Valdicava Brunello di Montalcino Madonna del Piano Riserva 2001 (100 pontos, 175 dólares).


Infelizmente, esses são os preços nos Estados Unidos. Para saber quanto custa no Brasil, multiplique os valores pelo menos por três – e, não raro, por quatro ou cinco. A apreciação do real melhorou a vida dos brasileiros amantes de vinho, mas ainda assim pagamos caro demais por nossas garrafas.


A Wine Spectator tem dado enorme destaque para a apelação de Châteauneuf-du-Pape, no Vale do Rhône. Faz sentido, porque temos aí realmente alguns grandes vinhos franceses a preços menos salgados que em Bordeaux e muitíssimo menos do que na Borgonha. A gloriosa terra do Romanée-Conti, aliás, passou novamente apagada na lista dos top 100. Uma injustiça pela qualidade de seus rótulos. Uma justiça absoluta pelo preço exorbitante deles. Entre os 20 primeiros colocados, temos nada menos do que quatro Châteauneuf-du-Pape, incluindo o campeão.


Interpreto esta lista da seguinte forma: vale olhá-la com atenção para descobrir algumas novidades e bons custo/benefício. Nesse ponto, a grande quantidade de rótulos baratos é louvável. Mas os top 100 não são os melhores vinhos do mundo em matéria de qualidade absoluta – pelo menos não todos os integrantes da lista. E, como já escrevi diversas vezes, é sempre bom desconfiar das notas da Wine Spectator (e de qualquer crítico, em geral). Servem como referência, mas às vezes escorregam feio.

domingo, 11 de novembro de 2007

Terroir


Ao falar de vinhos com personalidade, como fiz no último texto, caio quase inevitavelmente num dos termos mais usados e abusados pelos enófilos, produtores, importadoras e críticos: “terroir”. Essa palavrinha francesa virou moda, ainda que nem todos compreendam bem seu significado. Tão logo o sujeito faz um curso-relâmpago de meia hora sobre vinhos, já sai falando que tal garrafa “expressa maravilhosamente o terroir de sua região”. Vinícolas de todas as partes estampam no contra-rótulo pérolas de marketing barato como “este produto provém de um terroir privilegiado”. E por aí vai. Mas o que quer dizer terroir, exatamente?

Para os vinicultores sérios, terroir é um termo complexo que abarca todas as condições físicas e naturais de um terreno específico e a forma como se dá a interação desses fatores com o homem. Piorou? Traduzindo: um terroir é a soma da composição geológica, a altitude e o ângulo de inclinação do terreno, a maneira como a luz do sol e os ventos incidem naquele pedaço particular de chão, a drenagem do solo, a média pluviométrica, as variações de temperatura e até mesmo os microorganismos que vivem ali, e como o homem aprendeu ao longo do tempo, geralmente na base da tentativa e erro, a plantar num determinado espaço o tipo de uva que mais vai se beneficiar desse conjunto de condições específicas. Como se vê, não é um conceito trivial. Tampouco é uma idéia que pode ser aplicada a gigantescos vinhedos comerciais, plantados em áreas enormes.

Existe muita controvérsia sobre esse termo. Qualquer enófilo também já ouviu falar dos “crus” da Borgonha e de Bordeaux. Os crus são exatamente isso, os terrenos únicos e privilegiados. Alguns produtores do Novo Mundo defendem que terroir é tão somente uma peça de marketing. O raciocínio deles tem lá sua lógica: as novas regiões vinícolas, como Califórnia, Austrália, África do Sul, Chile e Argentina aprenderam a produzir vinhos de incrível qualidade usando muita tecnologia e contratando os melhores especialistas e enólogos internacionais. Muitas vezes, os resultados são até melhores do que os obtidos na Europa – e os preços são menores. Acuado e vendo sua supremacia escorrer pelo ralo, o Velho Mundo saiu-se com essa de “vinhos de terroir” – por definição, um terroir é algo único, que não pode ser copiado por mais dinheiro que se tenha. É uma forma de criar uma vantagem competitiva que, em tese, não poderia ser imitada. Só que o negócio pegou mais do que o previsto e entrou de vez no imaginário dos consumidores. Assim, ao invés de brigar com os europeus, nove em cada dez produtores de qualquer parte do planeta preferiram simplesmente usar da mesma artimanha e dizer que estão num “terroir privilegiado”. Resultado: o conceito banalizou-se.

Mas afinal, terroir é apenas marketing? Ou é um fator real e decisivo para a qualidade dos vinhos? Não sou o dono da verdade, mas tenho uma opinião muito clara sobre isso com base em tudo o que já li e degustei, nas conversas com enólogos e especialistas e no que pude perceber nas vinícolas que visitei. Acho que, hoje, em 99% dos casos esse termo é usado de forma abusiva e enganadora. Mas acho também que existe o 1% absolutamente verdadeiro.

Antes de mais nada, convém deixar claro que não se trata de mágica ou milagre o fato de um determinado terreno originar vinhos únicos. Para entender o que estou dizendo, primeiro vamos despir essa idéia de seu glamour. A rigor, o conceito de terroir poderia se aplicar a qualquer planta, não apenas a parreirais centenários que se espalham entre castelos nas mais belas paisagens européias. Vamos deixar esse estereótipo romântico de lado e pensar em algo mais corriqueiro e simples – um laranjal, por exemplo. É fato que uma mesma variedade de laranja vai gerar frutos de doçura e acidez distintas dependendo de onde for plantada. Não teremos o mesmo resultado cultivando laranjas no calor da Bahia ou na região serrana de Santa Catarina, por exemplo. Agora imagine plantar uma mesma variedade de laranja no Brasil inteiro, de alto a baixo; em seguida, selecionar as áreas que, ao longo dos anos, consistentemente dão os frutos com as características desejadas, como maior doçura; e depois ainda fazer um trabalho dentro dessas áreas privilegiadas para selecionar os melhores pés e produzir clones dessas plantas, livrando-se das demais, e aprimorando as técnicas de cultivo. Chegaríamos a alguma coisa como “crus” de laranjal no Brasil. E aí, seria isso apenas marketing? Que nada. As laranjas dessas áreas certamente teriam qualidade muito superior aos frutos provenientes de qualquer outro pedaço de chão no país.

Foi mais ou menos isso que aconteceu ao longo dos séculos com os mais nobres vinhedos da Borgonha e de Bordeaux, e também com algumas outras áreas da Europa, incluindo o Piemonte, na Itália, e regiões de cultivo da uva branca riesling na Alsácia e na Alemanha. Dizem que uma das provas irrefutáveis da existência do terroir é beber lado a lado os riesling da Alsácia produzidos em Schlossberg e aqueles que saem da área contígua de Furstentum. São terrenos vizinhos, mas com composições de solo bem diferentes. Aí opera-se o milagre do terroir: vinhos feitos com técnicas absolutamente idênticas e a mesmíssima variedade de uva, ainda por cima plantadas a poucos metros de distância, têm características tão distintas que qualquer leigo percebe a diferença.

É por isso que alguns dos mais consagrados enólogos do mundo dizem que é possível fazer bons vinhos em muitos lugares, mas que vinhos realmente grandiosos e excepcionais saem apenas de certos terroirs abençoados. Vale lembrar, contudo, que o terroir por si só não é garantia de qualidade: um mau enólogo pode fazer uma zurrapa mesmo tendo o melhor vinhedo do mundo para trabalhar.

Claro, fala-se muita bobagem sobre terroir, o que atrapalha ainda mais a entender o real peso desse fator na qualidade final dos vinhos. Dizem, por exemplo, que os vinhos brancos da uva chardonnay da área de Chablis, também na Borgonha, devem seu incrível caráter mineral e a perfeita harmonização com ostras ao fato de o terreno ter sido um mar no passado, tanto que até hoje são encontradas conchas e fósseis de peixes em seu solo. Tudo isso é verdade, mas não há qualquer prova científica de que exista relação entre o casamento enogastronômico perfeito de Chablis com ostras e as conchas enterradas entre as raízes das parreiras. Será? No creo en brujas, pero que las hay, las hay...

Numa imperdível entrevista a Veja.com, Aubert de Villaine, responsável pelo mitológico Domaine de La Romanée-Conti (DRC) – indiscutivelmente o símbolo máximo do conceito de terroir em todo o mundo – explica: “terroir é a um pedaço de solo delimitado pelo homem, com certas condições climáticas, ideal para um certo tipo de vinho. É uma alquimia entre o homem e a natureza estabelecida pela história. Os monges começaram este trabalho, no século XI ou XII, ao delimitar os vinhedos da Borgonha e as uvas que seriam plantadas: a pinot noir, para os tintos, e a chardonnay para os brancos.” De Villaine lamenta a apropriação e uso indevido do termo. “Infelizmente a palavra terroir não tem copyright. E todo mundo usa. Mas terroir não é marketing. O conceito não pode ser usado por um vinhedo de 1000 hectares no Novo Mundo, nem mesmo no Languedoc, na França. A história é indispensável para quem quer aplicar este conceito em seu pedaço de terra. É preciso de tempo. Os vinhos de terroir são, na minha opinião, superiores a qualquer outro.”

Um vinhedo de apenas 18 000 metros quadrados, delimitado por um murinho de pedra (foto acima), o Romanée-Conti é a prova viva de que o terroir existe. Em nenhum outro lugar do planeta a uva pinot noir gera um vinho assim, não importa quanto se tente e quanto se invista em toda sorte de tecnologia (e muito já se tentou e já se investiu). Daí seu preço absurdo, de pelo menos R$ 10 mil por garrafa para uma safra recente de qualidade apenas mediana – e várias vezes mais para as safras antigas, raras e de grande qualidade. Os vinhos de terroir são os de maior personalidade, os mais fascinantes e os únicos realmente inimitáveis. Infelizmente, é por isso mesmo que os mais famosos deles, como o Romanée-Conti, estão entre as bebidas mais caras que já foram produzidas.

Existem vinhos de terroir baratos? Sim, sem dúvida. Mas não é fácil encontrá-los. A primeira coisa a fazer é riscar da lista todos os produtos mais simples das grandes vinícolas comerciais. É preciso garimpar entre pequenos produtores -- sobretudo franceses, italianos, alemães, espanhóis e portugueses -- cujas famílias dedicam-se por gerações e gerações a cultivar e produzir vinho no mesmo local. Então, quem sabe, seja possível descobrir alguma jóia escondida numa pequena bodega empoeirada. Quem tiver alguma dica, pode mandar para este blogueiro.

PS.: Já que eu vinha comparando vinhos com pessoas, não resisti a reproduzir mais este trecho da entrevista de Aubert de Villaine. “Com os anos de garrafa você perde alguma qualidade da juventude, a energia, e principalmente o aspecto mais frutado da bebida, mas ganha-se em sutileza e elegância. Os grandes vinhos são como uma jovem. Começam a exibir sua beleza aos 15 anos e precisam chegar pelo menos os 20 anos para atingir maior complexidade e maturidade.” Leia toda a entrevista aqui. E leia sobre a história do Romanée-Conti aqui. Tudo do Roberto Gerosa, para mim o texto mais elegante entre os jornalistas especializados em vinho do Brasil.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Questão de personalidade


Há pouco, brinquei com a comparação entre vinhos e pessoas (ver post “Outono na taça”, abaixo). Já que embarquei nessa, vou completar o serviço. O estalo para escrever este texto veio quando estava no Esch Café, no bairro paulistano dos jardins, com minha esposa e um casal de amigos especiais. Foi uma noite boa, mas de vinhos apenas medianos. Na hora de fazer a reserva, negociamos um belo desconto na taxa de rolha do estabelecimento (ponto para o Esch) e assim decidimos levar as crianças de casa, o que sempre garante uma boa economia na conta.

Saquei da adega um Borgonha branco para iniciar os trabalhos: um Chablis premier cru de 2003, cujo produtor esqueci de anotar -- um erro imperdoável para quem escreve sobre o assunto, eu sei. Minha expectativa não era das mais altas porque a safra de 2003, quente demais em quase toda a França, roubou a acidez que é a espinha dorsal dos brancos, aquilo que deixa a boca salivando pelo próximo gole. O chablizinho estava mesmo meio chocho, longe do ideal de frescor e mineralidade dessa apelação. Meu amigo, por sua vez, levou um Mondavi Cabernet Sauvignon Reserva 2004. Era um vinho gostoso, mas tinha algo que me incomodava bastante. O que seria? De forma objetiva, não havia muito a criticar naquele Mondavi, um produto intermediário da famosa vinícola californiana, vendido nos Estados Unidos por algo ao redor de 30 dólares. Ao Chablis faltava acidez e vida, um defeito fácil de ser identificado. O Mondavi, entretanto, era tecnicamente bem-feito: boa fruta, bom corpo, madeira bem dosada, álcool equilibrado com os demais elementos. Nada errado. Ainda assim, soube de imediato que jamais ficaria satisfeito com aquela garrafa.

Demorei no máximo um par de goles para concluir o porquê. À minha frente estava um vinho sem personalidade. Faltava ali algo particular, especial, diferente – para o bem ou para o mal. Correto, sim, mas e daí? Nada surpreendia, nada intrigava naquele Mondavi. Há rótulos assim, às pencas, em todos os países produtores do mundo. São vinhos sem carisma, sem um traço peculiar. Como aquela pessoa sem graça que se veste adequadamente, comporta-se adequadamente, fala coisas adequadas – mas que faz tudo isso sem marcar quem está à volta. Ninguém realmente se encanta com um sujeito desses, ainda que não exista nada específico a criticar naquela pessoa. E talvez isso seja exatamente uma parte do problema.

Num vinho de 15, de 20 ou até 30 reais esse padrão mediano de qualidade é louvável. Significa que, mesmo gastando relativamente pouco, o consumidor terá um produto confiável em mãos. Mas em rótulos de preço elevado, espera-se um “algo a mais”. Aí ser tecnicamente bem-feito não é qualidade: é apenas obrigação.

Importante frisar que um vinho com personalidade não é sinônimo de um vinho que agrada a todos os gostos. Ao contrário. Personalidade é algo que às vezes incomoda. Pode ser que o santo não bata, como dizem. Um produto assim não é necessariamente melhor, mas dificilmente passa indiferente – e dificilmente outra garrafa será igual em suas qualidades e também em seus defeitos.

Essa capacidade de ser único, individual – mesmo quando vivemos na era dos produtos massificados, como retratou brilhantemente o artista americano Andy Warhol em várias telas, como a que reproduzo acima --, é um dos elementos que torna o vinho tão fascinante. Cada uva, cada terreno, cada enólogo, cada vinícola, cada safra, cada técnica de plantio e de vinificação influem no resultado final. Mais ainda: a cada ano que a garrafa descansa na adega, seu conteúdo evolui e transforma-se de uma maneira difícil de prever.

Por isso beber um vinho traz em si sempre um elemento de surpresa. Quem compra uma garrafa de seu uísque preferido sabe exatamente o que terá para tomar. Quem compra um refrigerante, também. São produtos padronizados, sempre idênticos. Com o vinho isso não acontece – ou não deveria acontecer. Quando encontro pela frente rótulos que seguem uma cartilha técnica que os torna todos muito parecidos, ainda que bem-feitos, torço o nariz. Posso não querer nenhuma surpresa quando abro minha Coca-cola, mas quero ter o prazer de descobrir coisas únicas a cada garrafa de vinho que desarolho.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Melhor pensar no plano B


Num artigo publicado recentemente no jornal Financial Times, a crítica inglesa Jancis Robinson chama atenção a um fato importante. Ela constata que nunca os vinhos “superpremium”, em especial os premier grand cru de Bordeaux (foto das cinco jóias acima) e os grand cru da Borgonha, custaram tão caro. A explicação para isso está na mais elementar lei que rege os mercados: oferta x demanda. A quantidade disponível desses rótulos de elite é limitada pela própria geografia – são vinhos únicos justamente porque nascem de solos únicos – e não há maneira de aumentar a produção sem sacrificar sua qualidade. Já a procura não pára de crescer, puxada pela emergência de uma sedenta classe de novos-ricos de países como China, Rússia, Índia, Emirados Árabes e outros. Se essa turma quiser abarrotar suas garagens de carros esportivos, basta que as Ferraris da vida ampliem a fabricação. Mas se quiser rechear suas adegas de Château Margaux, temos um problema, porque a produção anual é e será sempre a mesma.

Calma, existe um lado bom nessa história. Jancis conclui que, se nunca houve uma diferença de preço tão gritante entre os vinhos básicos e os cada vez mais inacessíveis ícones da vinicultura mundial, por outro lado a distância de qualidade entre eles jamais foi tão pequena. Graças à difusão de melhores práticas de cultivo e vinificação e aos avanços tecnológicos, hoje há uma quantidade e variedade de produtos de excelente nível provenientes dos mais diferentes países que é, sem exagero algum, inédita nos milhares de anos de história da vinicultura. Se tomar Château Mouton-Rothschild está mais proibitivo do que nunca, encontrar boas alternativas com melhor custo também está mais fácil do que em qualquer outra época. Nesse sentido, vivemos uma era de ouro da oferta de vinhos.

Conclusão óbvia: a menos que esteja sobrando muito, mas muito dinheiro, convém fugir dos rótulos mais famosos e reconhecidos e procurar um plano B. Sabendo escolher, é possível beber quase tão bem e gastar apenas uma pequena fração da montanha de dinheiro que é preciso desembolsar para colocar as mãos nas mais cobiçadas garrafas da França, Itália, Espanha e Estados Unidos.

Ao ler o artigo de Jancis – uma das especialistas em vinho mais sóbrias, com perdão da palavra, que conheço – tive a idéia de pesquisar o aumento de preço dos top de Bordeaux no Brasil. Mas como fazer isso num país em que o valor da moeda oscilou mais que montanha russa nos últimos anos? Seria preciso ajuda de algum economista. Seria, mas não foi, porque lembrei que tenho guardado em casa, por pura desorganização e preguiça de me livrar das velharias, diversos catálogos antigos da importadora Mistral. Como a empresa sempre trabalhou com preços em dólar, o problema estava resolvido. (Em tempo: na atual fase de real supervalorizado, a Mistral transformou-se num dos melhores lugares para comprar vinho, com preços bem atraentes. Vale conferir. Mas fica o alerta que o consumidor tem de exigir o dólar do dia. Nas duas últimas vezes que fui lá, os vendedores inexplicavelmente inflaram a cotação da moeda americana e só adotaram o valor correto mediante meu protesto.)

Pois bem, no catálogo da primavera de 2005, o mais antigo que achei em casa, a maioria dos premier grand cru de Bordeaux custava 424 dólares. O Château Margaux 99 saia por 498 dólares e o Château Haut-Brion 01, o mais caro, por 531 dólares. No atual catálogo da Mistral, da primavera de 2007, a maioria dos premier grand cru subiu para 839 dólares – quase o dobro do que essas garrafinhas custavam apenas dois anos atrás. Os mais baratos são o Haut-Brion e o Latour, ambos da problemática safra de 2002, vendidos por 745 dólares. Em qualquer caso, é muito dinheiro para um prazer tão fugaz, que se esvai em questão de hora.

Na mesma Mistral, contudo, fui mais do que feliz ao comprar o Château Lanessan 2000 por cerca de 60 dólares. Ok, passa longe de um Château Lafite, mas é um vinhaço, com toda a tipicidade de um ótimo Bordeaux. Ou o Château La Butte, ali pelos 40 dólares, esse um bordalês moderninho e menos pretensioso, mas muito gostoso e bem-feito. Por cerca de 70 reais é um tremendo custo/benefício. Recomendo.

Para ficarmos nos franceses, as edições das revistas Gula e Prazeres da Mesa que estão nas bancas trazem boas reportagens com dicas de vinhos num patamar de preço não tão elevado. Da matéria de Gula, destaco o Morgon Lapierre 2005, um cru de Beaujolais – para quem acha que todos os Beaujolais são vinhos de segunda categoria para bebericar na calçada, saiba que existem alguns produtos sérios dessa denominação. É o caso desse, que vale seus 120 reais como belo francês que é. Outra boa dica é o branco Quartz Les Cailloux du Paradis 2004, um sauvignon blanc do Vale do Loire vendido por 130 reais (ambos da World Wine). Já a revista Prazeres da Mesa foi ao sul da França, nas regiões da Provence, Languedoc e Roussillon. É justamente dessa área que saem, hoje, alguns dos melhores custo/benefício do país. Mas é preciso ter cuidado, porque também há muita porcaria por ali. Conhecer o produtor é essencial para não se decepcionar. O destaque da reportagem ficou para o Château La Bastide Optimée 2004, vendido na Decanter por cerca de 77 reais e que teve nota 89 da revista.

Como se vê, com algum discernimento é possível beber bons vinhos – até mesmo franceses -- sem pedir empréstimo bancário, ainda mais com o dólar rondando a casa de 1,70 real. Os premier grand cru caminham para ser artigos de über luxo, o que infelizmente parece ser uma tendência sem volta, mas o consumidor instruído nunca teve tantas opções para passar bem. Este é o momento de colocar em prática o plano B – ou C, D ou E,dependendo do seu orçamento ou disposição para gastar com vinhos. Há ótimas opções para todos os bolsos e gostos.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Outono na taça


Bastou despejar o líquido na taça e ficou evidente que o verão estava chegando ao seu término para o Glen Carlou Grand Classic 2002, um belo sul-africano à base de Cabernet Sauvignon e Merlot. Este é, para mim, o ápice na vida de muitos vinhos: o momento em que flagrantemente a juventude começa a ser substituída pela maturidade, mas nem aquela foi-se por completo, nem esta instalou-se definitivamente. Há traços das duas fases coexistindo. É o outono do vinho.


Cair na comparação entre o fermentado de uvas e pessoas é tão fácil quanto secar uma garrafa de um bom Bordeaux. Mas, assim como não resisto a um “chateauzinho”, também não pude fugir à tentação da analogia óbvia. Na juventude, o vinho tem mais força, mais explosão, mais exuberância. Na maturidade, é mais intrigante, mais complexo, mais sereno. Ah, sim: antes que me esqueça, isso vale para os rótulos bons de fato. Como regra, os produtos simples morrem cedo. Tudo o que têm de bom é o frescor; quando perdem isso, perdem tudo. Mas as grandes garrafas passam por fases – e essa é uma das belezas da chamada degustação vertical, em que são provados diferentes anos de um mesmo vinho. Aí fica claro que cada safra é uma história, que cada enólogo que passou pela vinícola deixa sua assinatura, mas também que cada etapa da existência de um vinho tem suas peculiaridades.


Definir o que é melhor resume-se a uma questão de gosto – e gosto cada um tem o seu. Em alguns casos, dá até para generalizar. Na média, os consumidores americanos preferem vinhos novos, até porque não têm o hábito de guardá-los em adegas. Já os ingleses mostram uma queda pela bebida mais evoluída. Faz uns meses, um amigo – vou preservar seu nome – contou que estava numa fase de adorar Bordeaux jovem. E explicou: “é como se deitar com uma virgem à sombra de um laranjal”. Você pode pensar o que quiser da comparação – olha a analogia entre vinhos e pessoas novamente --, mas ela tem lá o seu sentido. Uma garrafa muito jovem possui frescor único, mas certamente ainda não evoluiu tudo o que tinha para evoluir, não desabrochou inteiramente. Claro, tudo tem limite. Por extensão do raciocínio, quem abrir um Château Latour, um Romanée-Conti ou um Château D’Yquem recém-engarrafado é um pedófilo. Deveria ir para a cadeia. São vinhos que melhoram tanto, mas tanto, com a idade que é uma tolice não deixar o tempo operar seus milagres.


Toquei nesse assunto porque recentemente provei uma boa leva de vinhos outonais, todos soberbos em sua maturidade. Três deles -- o Sassicaia 2002, o Bertani Amarone Recioto della Valpolicella 1990 e o Gaja Barolo Sperss 1991 -- estão no último post (abaixo). Os mais recentes foram o Glen Carlou 2002 (disponível na importadora Grand Cru por cerca de 80 reais) e o branco uruguaio Prelúdio 2004 (da Expand, também ao redor de 80 reais). O leitor não deixará de observar a disparidade entre as safras. Essa é mesmo uma das grandes dificuldades de regular o consumo de uma adega: o envelhecimento dos vinhos não segue uma ordem cronológica exata. Há garrafas de 1990 que estão novas e há garrafas de 2004 que já são respeitáveis senhoras. Como saber a hora certa de abrir? Só lendo, ouvindo indicação de quem entende ou experimentando.


Como regra geral, vale destacar que as safras ruins tornam os vinhos mais precoces e menos longevos. É isso que explica o fato de o Sassicaia e o Glen Carlou citados no parágrafo de cima já começarem a apresentar os primeiro sinais de declínio. O ano de 2002 foi péssimo em várias partes da Europa, incluindo Toscana, Piemonte, Bordeaux, Rhône e boa parte de Portugal e Espanha. Foi ruim também na África do Sul. O Glen Carlou é um vinho muito agradável, elegante, com certa complexidade, mas nota-se que o longo estágio de 24 meses em carvalho foi um pouco demais para a modesta estrutura de fruta que a safra entregou. A madeira às vezes fica em primeiro plano, dominando o palato, o que não deve ocorrer jamais.


Já o Preludio 2004 está uma delícia para quem gosta de vinhos brancos evoluídos, como eu. Tem aromas de melão supermaduro, mel, curau de milho, compondo uma mistura exótica e muito sedutora. Mas note que não é todo o branco que se presta para a evolução. A maioria dos sauvignon blanc no Novo Mundo, por exemplo, fica tanto melhor quanto mais novo, pois seu valor está no frescor e na acidez. Note também que a evolução dos brancos costuma ser mais rápida. Uma garrafa de 2004 seria considerada jovem para quase qualquer tinto razoável. Mas esse Prelúdio branco (existe o Prelúdio tinto também) já está se despedindo da vida – mais um ano e tchau. Por isso, é preciso ter muito cuidado ao comprar brancos. Na dúvida, sobretudo para as garrafas relativamente baratas, abaixo de 50 reais, prefira as safras mais recentes. Eu só compraria um chardonnay argentino ou chileno dessa faixa de preço de 2005 para frente.


Outro vinho incrível que bebi recentemente foi o Château Lanessan 2000, um Bordeaux de um produtor bom numa safra excelente. Também se percebia que não era mais uma criança. Mas Bordeaux é Bordeaux, e ali a maturidade vem bem devagarinho. Vinhaço.


Para fechar: um leitor perguntou como se sabe quando um vinho está evoluído – ou maduro, se preferir. É fácil. Primeiro, pela cor: os tintos perdem o rubi-vivo ou violeta e ganham tonalidades de tijolo; os brancos deixam de ser quase transparentes e vão ficando amarelo mais escuro. No nariz e na boca, percebe-se toques de oxidação (principalmente nos brancos). Nota-se também, sobretudo nos tintos, a perda de aromas fortes de frutas e o aparecimento de cheiros que remetem a terra molhada, bosque com folhas úmidas caídas no chão, cogumelos. Por isso a analogia com o outono também é boa. Para muitos connaisseurs, essa é a estação mais aguardada – ao menos dentro da taça.

sábado, 13 de outubro de 2007

Na prática a teoria é diferente


Em áreas produtoras tradicionais, os vinhos só podem ser inteiramente compreendidos dentro do contexto que os cerca. Por exemplo: quase sempre os rótulos típicos de uma região e a culinária local harmonizam perfeitamente, porque ambos evoluíram de mãos dadas ao longo do tempo. O clima, os hábitos, os ingredientes disponíveis, tudo explica por que um vinho de determinada parte tem certas características e não outras. Talvez isso não seja mais verdade em tempos de globalização, quando um produtor da Úmbria -- coitado -- tem de pensar no gosto do consumidor americano. Mas antes era assim que funcionava. Por isso os produtos mais tradicionais, que mantêm sua receita inalterada, encerram em si, de certa forma, a síntese de um povo, de uma cultura. Uma pequena aula de história vendida em garrafas, disponível a quem souber ler o que está dito nas entrelinhas -- ou entre goles.

Não é outra a explicação para o tom irritadiço de Jacopo Biondi Santi, um dos nomes mais tradicionais da Toscana, quando tive a oportunidade de entrevistá-lo, há alguns meses. Perguntei o que o produtor achava do crítico Robert Parker, que consistentemente confere notas baixas a seus vinhos -- que, no entanto, são caríssimos, sabidamente longevos (podem durar mais de cem anos) e reverenciados por uma parcela importante dos conhecedores não só da Itália, mas de todo o mundo. Biondi Santi disse que não podia entender como alguém consegue avaliar a fundo um vinho sem pisar no local onde é produzido. “Se algum dia Parker vier nos visitar, talvez compreenda o que fazemos”, disse.

Dei toda essa volta para chegar onde queria. Há alguns dias, participei de uma degustação de vinhos italianos a convite de Sylvio Lazzarini, proprietário do Varanda Grill. Já falei do Varanda várias e várias vezes no meu blog -- gole vai, gole vem, carne vai, carne vem, o Sylvio tornou-se um amigo que divide comigo a paixão por vinhos e gastronomia. A boa notícia é que ele acaba de comprar o estabelecimento contíguo ao Varanda e, a partir do ano que vem, vai transformá-lo no que promete ser um dos grandes restaurantes italianos de São Paulo. A idéia é montar uma casa tradicional, com um número não exagerado de pratos que devem primar pela qualidade dos ingredientes e pela execução. Tive a oportunidade de vislumbrar o que vem por aí. O próprio Sylvio pilotou o fogão, trazendo à mesa uma seqüência de receitas típicas da Toscana, Piemonte e Lombardia.

Os vinhos foram provados junto com as comidas, o que normalmente desrespeita qualquer manual de degustação, mas nesse caso foi de um bom senso incrível. Explico. Os rótulos italianos são freqüentemente espancados em degustações às cegas. Ao lado de Australianos, Californianos, ou mesmo dos grandes Bordeaux, os italianos tradicionais ficam ofuscados porque são mais leves, mais sutis, menos explosivos (note bem, falo dos tradicionais, porque hoje há vinhos italianos para todos os gostos, inclusive grandes campeões de degustações). Acontece que quando a teoria acaba e começa a vida real -- quando a comida chega à mesa --, a coisa muda de figura. As garrafas da velha bota são muitas vezes as primeiras a serem esvaziadas. Que mistério é esse? Não há mistério algum. Apenas a comprovação do que escrevi nos dois primeiros parágrafos. Todo mundo sabe como a comida ocupa um papel central na vida dos italianos de qualquer região. Ora, nada mais natural que seus vinhos sejam desenvolvidos para respeitar -- e melhorar -- a comida. Rótulos superencorpados podem ganhar notas mais altas, mas brigam ou se sobrepõem à maioria dos pratos. Na teoria, os vinhos italianos clássicos nem sempre são bem pontuados. Na prática...

Fecho com um breve parecer sobre as garrafas que degustamos. Confira que beleza:

Vintage Tunina 2004 (Branco, Venezia) – Muito seco, sutil e delicado, foi perfeito para iniciar os trabalhos. Não é propriamente um grande branco, mas o tipo de vinho que não enjoa. Quanto houver, quanto vai. Pena que havia só uma garrafa. Ou seriam duas?

Sassicaia 2002 (Toscana) – Um dos mais clássicos supertoscanos, como são chamados os vinhos produzidos na Toscana com uvas de Bordeaux. A safra foi problemática na região, mas não a ponto de roubar a incrível classe desse rótulo à base de Cabernet Sauvignon. Aromas explosivos e complexos e elegância de sobra na boca.Três detalhes, contudo, denunciam que a mãe natureza não ajudou muito em 2002: falta um pouco de concentração, os taninos apresentam um leve travo verde e o vinho já apresenta sinais claros de evolução, o que não deveria ocorrer tão cedo para um produto desse calibre. Pode não ser um dos grandes Sassicaias, mas ainda assim é um grande vinho.

Collezione de Marchi Cabernet Sauvignon 1999 (Toscana) – Outro supertoscano, este de uma safra excelente. Menos elegante e refinado que o Sassicaia, porém mais encorpado e com muito mais estrutura. Vai longe, pois não apresenta um sinal sequer de evolução. Às cegas, chutei que deveria ser bem mais novo, provavelmente de 2003. Vinhaço.

Gaja Barolo Sperss 1991 (Piemonte) – Absolutamente maravilhoso com uma codorna e polenta. Vinho para comida, sutil, delicado, perfumado por aromas complexos de couro e cogumelos. Já mostra que é um senhor, mas ainda está em boa forma com seus 16 anos.

Elio Altare Barolo Vigneto Arborina 1999 (Piemonte) – Um Barolo mais moderno e encorpado, mas sem perder as qualidades clássicas da região. É dá ótima safra de 1999 (o Piemonte experimentou uma feliz seqüência de grandes anos de 1996 até 2001; depois, 2002 foi um desastre, a exemplo do que ocorreu na Toscana, e as safras seguintes são apenas razoáveis). A Nebbiolo, uva dos Barolos e Barbarescos, é uma das mais caprichosas e difíceis do mundo, ao lado da Pinot Noir da Borgonha. Mas, nos dois casos, quando o produtor acerta a mão, o resultado é de chorar. Esse vinho deixou a mesa em silêncio. Para mim, um dos melhores – se não o melhor – da noite.

La Palazzola Merlot 1999 (Umbria) – Grande vinho, feito 100% com a uva francesa Merlot, que se adapta muito bem na Úmbria e também na Toscana. Envelhecido por 12 meses em barricas francesas de primeiro uso. Exótico, com especiarias, ervas, resina. Quase turvo no copo, mas elegante na boca. Provavelmente foi aberto na hora certa, pois já adquiriu a complexidade do envelhecimento e ainda preserva a fruta. Pede pratos um pouco mais encorpados.

Bertani Amarone Recioto della Valpolicella 1990 (Veneto) – Ótimo exemplar de Amarone, ainda firme apesar dos 17 anos. Os Amarones costumam ser encorpados, pois as uvas são secas para perder água e acumular açúcar antes da vinificação. Geralmente para tomar sozinho em dias frios como “vinho de meditação” ou acompanhando pratos fortes, como ossobuco. Este aqui consegue unir força e elegância, o que o torna divino para a mesa.

Gaja Barbaresco 2000 (Piemonte) – Para mim, o outro candidato a vinho da noite. O Gaja é considerado o rei do Barbaresco e 2000 foi talvez a melhor safra da história recente do Piemonte. Como poderia dar errado? Não deu mesmo. Dizer que respeita a comida é pouco; essa obra-prima melhora a comida. Se alguém quiser entender o significado da palavra elegância, um gole desse Barbaresco será a lição mais didática que consigo imaginar. Um vinho feminino -- uma mulher de longo. A sedução em 750 ml. Faz sonhar e deixa uma sensação de vazio quando vemos que está indo embora. Traio qualquer outra garrafa com essa aqui. (Mas como uma verdadeira estrela de cinema, esse vinho também tem um problema sério: não é muito acessível. Custa 1 200 reais.)

Passito di Panteleria Ben Rye Donnafugatta 2004 – Ótimo vinho de sobremesa, lembrando caramelo queimado com cravo e casca de laranja. Untuoso, rico, enche a boca. Uma delícia. Combina com sobremesas não muito doces de cremes e frutas (não com chocolate), mas pode fechar brilhantemente uma refeição sozinho.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Casa nova


Casa nova, vida nova. Isso merece um brinde. Para quem se acostumou a ler o Carta de Vinhos na área de blogs do portal da revista Exame, saiba que agora atendemos neste novo endereço virtual. Espero não apenas manter, mas melhorar a freqüência e a qualidade dos textos. Bem, essa é a idéia. Vamos ver se a correria do dia-a-dia não transforma minhas boas intenções em promessas de político. Por falar em intenções, estou com a cabeça repleta delas: além dos meus posts costumeiros, pretendo analisar e dar dicas sobre matérias de vinhos publicadas na imprensa nacional e internacional. E existe o projeto de transformar este humilde blog em algo maior, beeeeem maior. Aguardem. Àqueles que seguem meu trabalho (trabalho?) de blogueiro, quero deixar aqui os mais sinceros agradecimentos. Críticas e sugestões para melhorar são muito bem-vindas. Vamos em frente!