domingo, 11 de novembro de 2007

Terroir


Ao falar de vinhos com personalidade, como fiz no último texto, caio quase inevitavelmente num dos termos mais usados e abusados pelos enófilos, produtores, importadoras e críticos: “terroir”. Essa palavrinha francesa virou moda, ainda que nem todos compreendam bem seu significado. Tão logo o sujeito faz um curso-relâmpago de meia hora sobre vinhos, já sai falando que tal garrafa “expressa maravilhosamente o terroir de sua região”. Vinícolas de todas as partes estampam no contra-rótulo pérolas de marketing barato como “este produto provém de um terroir privilegiado”. E por aí vai. Mas o que quer dizer terroir, exatamente?

Para os vinicultores sérios, terroir é um termo complexo que abarca todas as condições físicas e naturais de um terreno específico e a forma como se dá a interação desses fatores com o homem. Piorou? Traduzindo: um terroir é a soma da composição geológica, a altitude e o ângulo de inclinação do terreno, a maneira como a luz do sol e os ventos incidem naquele pedaço particular de chão, a drenagem do solo, a média pluviométrica, as variações de temperatura e até mesmo os microorganismos que vivem ali, e como o homem aprendeu ao longo do tempo, geralmente na base da tentativa e erro, a plantar num determinado espaço o tipo de uva que mais vai se beneficiar desse conjunto de condições específicas. Como se vê, não é um conceito trivial. Tampouco é uma idéia que pode ser aplicada a gigantescos vinhedos comerciais, plantados em áreas enormes.

Existe muita controvérsia sobre esse termo. Qualquer enófilo também já ouviu falar dos “crus” da Borgonha e de Bordeaux. Os crus são exatamente isso, os terrenos únicos e privilegiados. Alguns produtores do Novo Mundo defendem que terroir é tão somente uma peça de marketing. O raciocínio deles tem lá sua lógica: as novas regiões vinícolas, como Califórnia, Austrália, África do Sul, Chile e Argentina aprenderam a produzir vinhos de incrível qualidade usando muita tecnologia e contratando os melhores especialistas e enólogos internacionais. Muitas vezes, os resultados são até melhores do que os obtidos na Europa – e os preços são menores. Acuado e vendo sua supremacia escorrer pelo ralo, o Velho Mundo saiu-se com essa de “vinhos de terroir” – por definição, um terroir é algo único, que não pode ser copiado por mais dinheiro que se tenha. É uma forma de criar uma vantagem competitiva que, em tese, não poderia ser imitada. Só que o negócio pegou mais do que o previsto e entrou de vez no imaginário dos consumidores. Assim, ao invés de brigar com os europeus, nove em cada dez produtores de qualquer parte do planeta preferiram simplesmente usar da mesma artimanha e dizer que estão num “terroir privilegiado”. Resultado: o conceito banalizou-se.

Mas afinal, terroir é apenas marketing? Ou é um fator real e decisivo para a qualidade dos vinhos? Não sou o dono da verdade, mas tenho uma opinião muito clara sobre isso com base em tudo o que já li e degustei, nas conversas com enólogos e especialistas e no que pude perceber nas vinícolas que visitei. Acho que, hoje, em 99% dos casos esse termo é usado de forma abusiva e enganadora. Mas acho também que existe o 1% absolutamente verdadeiro.

Antes de mais nada, convém deixar claro que não se trata de mágica ou milagre o fato de um determinado terreno originar vinhos únicos. Para entender o que estou dizendo, primeiro vamos despir essa idéia de seu glamour. A rigor, o conceito de terroir poderia se aplicar a qualquer planta, não apenas a parreirais centenários que se espalham entre castelos nas mais belas paisagens européias. Vamos deixar esse estereótipo romântico de lado e pensar em algo mais corriqueiro e simples – um laranjal, por exemplo. É fato que uma mesma variedade de laranja vai gerar frutos de doçura e acidez distintas dependendo de onde for plantada. Não teremos o mesmo resultado cultivando laranjas no calor da Bahia ou na região serrana de Santa Catarina, por exemplo. Agora imagine plantar uma mesma variedade de laranja no Brasil inteiro, de alto a baixo; em seguida, selecionar as áreas que, ao longo dos anos, consistentemente dão os frutos com as características desejadas, como maior doçura; e depois ainda fazer um trabalho dentro dessas áreas privilegiadas para selecionar os melhores pés e produzir clones dessas plantas, livrando-se das demais, e aprimorando as técnicas de cultivo. Chegaríamos a alguma coisa como “crus” de laranjal no Brasil. E aí, seria isso apenas marketing? Que nada. As laranjas dessas áreas certamente teriam qualidade muito superior aos frutos provenientes de qualquer outro pedaço de chão no país.

Foi mais ou menos isso que aconteceu ao longo dos séculos com os mais nobres vinhedos da Borgonha e de Bordeaux, e também com algumas outras áreas da Europa, incluindo o Piemonte, na Itália, e regiões de cultivo da uva branca riesling na Alsácia e na Alemanha. Dizem que uma das provas irrefutáveis da existência do terroir é beber lado a lado os riesling da Alsácia produzidos em Schlossberg e aqueles que saem da área contígua de Furstentum. São terrenos vizinhos, mas com composições de solo bem diferentes. Aí opera-se o milagre do terroir: vinhos feitos com técnicas absolutamente idênticas e a mesmíssima variedade de uva, ainda por cima plantadas a poucos metros de distância, têm características tão distintas que qualquer leigo percebe a diferença.

É por isso que alguns dos mais consagrados enólogos do mundo dizem que é possível fazer bons vinhos em muitos lugares, mas que vinhos realmente grandiosos e excepcionais saem apenas de certos terroirs abençoados. Vale lembrar, contudo, que o terroir por si só não é garantia de qualidade: um mau enólogo pode fazer uma zurrapa mesmo tendo o melhor vinhedo do mundo para trabalhar.

Claro, fala-se muita bobagem sobre terroir, o que atrapalha ainda mais a entender o real peso desse fator na qualidade final dos vinhos. Dizem, por exemplo, que os vinhos brancos da uva chardonnay da área de Chablis, também na Borgonha, devem seu incrível caráter mineral e a perfeita harmonização com ostras ao fato de o terreno ter sido um mar no passado, tanto que até hoje são encontradas conchas e fósseis de peixes em seu solo. Tudo isso é verdade, mas não há qualquer prova científica de que exista relação entre o casamento enogastronômico perfeito de Chablis com ostras e as conchas enterradas entre as raízes das parreiras. Será? No creo en brujas, pero que las hay, las hay...

Numa imperdível entrevista a Veja.com, Aubert de Villaine, responsável pelo mitológico Domaine de La Romanée-Conti (DRC) – indiscutivelmente o símbolo máximo do conceito de terroir em todo o mundo – explica: “terroir é a um pedaço de solo delimitado pelo homem, com certas condições climáticas, ideal para um certo tipo de vinho. É uma alquimia entre o homem e a natureza estabelecida pela história. Os monges começaram este trabalho, no século XI ou XII, ao delimitar os vinhedos da Borgonha e as uvas que seriam plantadas: a pinot noir, para os tintos, e a chardonnay para os brancos.” De Villaine lamenta a apropriação e uso indevido do termo. “Infelizmente a palavra terroir não tem copyright. E todo mundo usa. Mas terroir não é marketing. O conceito não pode ser usado por um vinhedo de 1000 hectares no Novo Mundo, nem mesmo no Languedoc, na França. A história é indispensável para quem quer aplicar este conceito em seu pedaço de terra. É preciso de tempo. Os vinhos de terroir são, na minha opinião, superiores a qualquer outro.”

Um vinhedo de apenas 18 000 metros quadrados, delimitado por um murinho de pedra (foto acima), o Romanée-Conti é a prova viva de que o terroir existe. Em nenhum outro lugar do planeta a uva pinot noir gera um vinho assim, não importa quanto se tente e quanto se invista em toda sorte de tecnologia (e muito já se tentou e já se investiu). Daí seu preço absurdo, de pelo menos R$ 10 mil por garrafa para uma safra recente de qualidade apenas mediana – e várias vezes mais para as safras antigas, raras e de grande qualidade. Os vinhos de terroir são os de maior personalidade, os mais fascinantes e os únicos realmente inimitáveis. Infelizmente, é por isso mesmo que os mais famosos deles, como o Romanée-Conti, estão entre as bebidas mais caras que já foram produzidas.

Existem vinhos de terroir baratos? Sim, sem dúvida. Mas não é fácil encontrá-los. A primeira coisa a fazer é riscar da lista todos os produtos mais simples das grandes vinícolas comerciais. É preciso garimpar entre pequenos produtores -- sobretudo franceses, italianos, alemães, espanhóis e portugueses -- cujas famílias dedicam-se por gerações e gerações a cultivar e produzir vinho no mesmo local. Então, quem sabe, seja possível descobrir alguma jóia escondida numa pequena bodega empoeirada. Quem tiver alguma dica, pode mandar para este blogueiro.

PS.: Já que eu vinha comparando vinhos com pessoas, não resisti a reproduzir mais este trecho da entrevista de Aubert de Villaine. “Com os anos de garrafa você perde alguma qualidade da juventude, a energia, e principalmente o aspecto mais frutado da bebida, mas ganha-se em sutileza e elegância. Os grandes vinhos são como uma jovem. Começam a exibir sua beleza aos 15 anos e precisam chegar pelo menos os 20 anos para atingir maior complexidade e maturidade.” Leia toda a entrevista aqui. E leia sobre a história do Romanée-Conti aqui. Tudo do Roberto Gerosa, para mim o texto mais elegante entre os jornalistas especializados em vinho do Brasil.