quarta-feira, 16 de julho de 2008

A estrela de Portugal


Há dias que começam bem. O último 6 de junho foi um deles. Mal me vi de pé, fomos para a Quinta da Lagoa, um pequeno produtor do famoso Queijo da Serra da Estrela. Esse laticínio é, sem dúvida, um dos muitos tesouros gastronômicos de Portugal. Curiosamente, a produção não ocorre exatamente na serra que lhe dá nome, mas em uma área próxima, mais ao pé das montanhas.

Entrar na Quinta da Lagoa é um pouco uma viagem ao passado – seja pela rusticidade dos móveis e objetos, seja pela calma acolhedora e vontade de puxar prosa dos proprietários. Quem está à frente do negócio é Pedro, um senhor simples, direto, honesto e meio bruto – seu caráter parece combinar como todo o ambiente à volta --, mas ao mesmo tempo com um profundo conhecimento da arte de fazer laticínios.

A fabricação na quinta começou com a avó. À época, o queijo só saia bom mesmo nos meses em que a temperatura e umidade eram adequadas. Hoje, com alguns equipamentos, a produção atinge qualidade soberba em todas as estações. Mas engana-se quem pensa que Pedro é a favor de muita tecnologia. Ele reclama – e como – das exigências de assepsia que vigoram atualmente em Portugal. “É um exagero. Vão inviabilizar a fabricação de queijos bons”, diz. A queixa é explicada pela constatação de que todo o ambiente à volta contribui de alguma forma para a qualidade final do produto.

De fato, alguns queijos de qualidade excepcional não conseguem ser feitos em outros locais além de sua área de origem, por mais que todo o processo de fabricação seja rigorosamente o mesmo. Mais que isso: há relatos de fazendas de onde saiam laticínios incríveis e que "perderam a mão" depois de passar por uma modernização que impôs máquinas onde antes o trabalho provinha do suor humano e que instituíram um ambiente 100% esterilizado onde antes havia apenas uma área razoavelmente limpa (no máximo). Há um terroir do queijo? É bem possível. O queijo é resultado de uma ação química que envolve organismos vivos. É razoável supor que em certos locais esses organismos sejam diferentes – ou se comportem de forma distinta – do que em outros. Não sei se a explicação é essa mesma. Mas tente fazer um queijo como o da Quinta da Lagoa em outra região. Impossível.

O queijo da Serra da Estrela é feito de leite de ovelha – são necessários sete litros para uma unidade de meio quilo, em média – e temperado com sal e flor de cardo. Mais nada. O restante do milagre que origina essa iguaria fica por conta da destreza e do conhecimento de gente como Pedro. E talvez do tal terroir.

Naquela manhã experimentamos queijos de diversas idades – uns mais velhos e duros, outros derretendo como um requeijão. Todos deliciosos. E tomamos vinho tinto, embora a harmonização clássica – e divina – seja com Porto. Ali também descobri que o hábito de abrir o queijo da Serra da Estrela pelo topo e comer seu conteúdo cremoso com colher “é coisa da gente de Lisboa”. Na região mesmo, é na faca.

Tradição é tradição, e quem faz é que sabe. Mas nesse caso fico com Lisboa. Acho que a colher funciona muito bem. Para completar, vou ser do contra também na harmonização. Não há o que contestar em relação ao vinho do Porto, que casa de maneira genial com o laticínio. Mas, sem desprezar o Porto, gostaria de experimentar o Serra da Estrela com um bom branco fermentado em barrica, daqueles encorpados e, de preferência, já com alguns anos nas costas. Adoro harmonizar brancos com queijos – acho que um respeita mais o outro do que com tintos. Deve ficar muito bom com o Serra da Estrela.

Quem não quiser correr riscos, vá pela tradição. Em Portugal, essa escolha nunca é errada. E muitas vezes é a única: Pedro não admitiria servir um branco ali com seus queijos nem que eu implorasse.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Lei seca: governo erra na dose


A série sobre Portugal vai sofrer uma breve interrupção para um brevíssimo comentário sobre o tema do momento: a “lei seca” para os motoristas brasileiros. Claro, estou falando da lei 11.705, que altera o código de trânsito e proíbe o consumo de qualquer quantidade de bebida alcoólica para condutores (proíbe acima de 2 decigramas de álcool por litro de sangue, quer dizer, até bombom de licor extrapola o limite). Antes, era permitido no máximo 6 decigramas, o que equivale a mais ou menos dois copinhos de cerveja. Convenhamos, já era pouco. Agora, nem isso.

Com perdão do trocadilho, acho que o governo errou na dose. Ninguém com consciência da enorme quantidade de acidentes decorrentes da mistura de álcool + direção – muitos deles fatais, e não raro deixando vítimas inocentes – pode ser contra uma punição rigorosa para quem conduz um veículo em estado de embriaguez. Daí a proibir duas taças de vinho durante um jantar ou um chopinho com os amigos após o trabalho vai uma distância enorme.

Detalhe: um reles copo de cerveja demora seis horas para desaparecer do organismo. Enquanto isso, o bafômetro acusará álcool – e a pessoa pode ir em cana (com perdão do trocadilho outra vez). Fala sério: quem fica sem condições de guiar se tomou um ou dois copos de cerveja há quatro horas? Ninguém, é óbvio.

A lei é necessária, a punição rigorosa para os excessos é necessária -- mas é preciso estabelecer corretamente o que é excesso e, mais do que isso, o que é um excesso criminoso. Creio que o limite de álcool permitido no organismo deveria ser ampliado, ao menos nas cidades. Que seja rigoroso ao extremo nas estradas, estou de acordo. Só que do jeito que está, ninguém mais pode pegar o carro, ir ao restaurante com a esposa ou marido, tomar duas taças de vinho e voltar para casa. O que seria um programa civilizadíssimo virou crime digno de cadeia. Não faz sentido.

Em diversos países o limite permitido é mais elástico. Nos Estados Unidos, é de 8 dg de álcool por litro de sangue. Por aqui, ninguém duvida que esse exagero vai fomentar um mercado inédito de propinas. Ou isso, ou a lei não vai “pegar”, como acontece com freqüência neste país. O melhor texto que li sobre o assunto é de Josimar Melo, crítico gastronômico da Folha de S. Paulo (Lei seca é elitista, reacionária e semeia a corrupção). Vale a pena conferir.

sábado, 28 de junho de 2008

Na Bairrada, como os bairradinos


O simpático porquinho aí do lado é um legítimo leitão da Bairrada a caminho da mesa. Coisa seriíssima. Sempre um animal de seis a oito quilos aproximadamente, temperado pelo interior e preparado inteiro num espeto de madeira (antigamente) ou metal (mais comum hoje em dia). O bicho tem uma carne macia e pra lá de saborosa e sai do fogo recoberto por uma capa pururuca -- como se nota pela cor de bronze -- que levou os convidados da Dão Sul a um estado próximo da comoção. Tirei a foto na cozinha da vinícola Quinta do Encontro, talvez a mais moderna de Portugal. Foi lá mesmo que devoramos esse aí – e mais outro que bem deveria ser um irmão gêmeo, tão igualmente maravilhoso estava em tudo.

Já que a brincadeira é de gente grande, qual vinho escolher para o banquete? Havia opções de sobra. Mas nada escoltou o leitão melhor do que um espumante tinto – tinto mesmo, não rosé – feito da uva Baga, a casta típica da Bairrada. Surpreso? Também fiquei. Logo no começo da refeição, fomos avisados que essa é a combinação clássica da região. Sempre quebrei a cara em todas as vezes que apostei contra harmonizações que foram estabelecidas ao longo de décadas ou séculos e que fazem parte da cultura gastronômica de uma localidade. Mesmo assim, não pude deixar de duvidar novamente. Com vários tintos grandiosos à minha frente, seria um rústico espumante tinto que faria a melhor combinação? Foi.

Sozinho, aquela bebida não é das mais prazerosas. Um espumante pesado, com taninos perceptíveis e bastante ácido. Não serve de aperitivo. Não tem nem sombra do refinamento de um champanhe. Não é, por si, um grande vinho. Mas com o leitão, deu-se a mágica da harmonização perfeita. As bolhas generosas e a acidez viva quebravam a gordura do porco e lavavam a boca, aumentando o apetite e preparando para a próxima garfada e o próximo gole. Os taninos desapareciam com a comida e ajudavam a digeri-la. O leve frutado conferia um toque a mais na receita, sem nunca se sobrepor a ela.

Os vinhos brancos que tínhamos desapareciam com o leitão. Os tintos não iam mal – o melhor deles foi o Encontro 2005, um 100% Baga de alta classe, feito para a adega --, mas atrapalhavam um pouco na percepção da carne, que é delicada, apesar de gordurosa. Com o espumante tudo funcionou. Esse foi talvez o melhor exemplo da sabedoria regional em harmonizações que já pude experimentar. Quem for para lá, não pense duas vezes: na Bairrada, como os bairradinos.

E Portugal é bom mesmo nisso. O casamento de queijo da Serra da Estrela com vinho do Porto é outro tesouro enogastronômico que a Unesco deveria tombar como patrimônio da humanidade. Aí a lógica de harmonização é a mesma da nossa goiabada com queijo branco – o contraste de doce e salgado. Mas o Serra da Estrela merece um texto inteiro para si. Minha visita a um produtor artesanal desse laticínio -- que está, sem dúvida, entre os melhores do mundo -- será o tema do próximo post.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Portugal – I


Quem ainda não desistiu de dar uma passada pelo blog já percebeu que outros compromissos me impediram de atualizá-lo por um período muito longo. Pois foi justamente um desses compromissos – certamente o mais prazeroso dos últimos tempos - que agora me obriga a tomar vergonha na cara, espanar a poeira e resgatar o Carta de Vinhos do estado de hibernação em que se encontrava.

Como já está evidente que não terei tempo para escrever textos longos, tentarei uma mudança de estilo: atualizar o blog com maior freqüência, talvez duas ou três vezes por semana, porém me estendendo menos de cada vez. O que, afinal, é a linguagem-padrão dos blogueiros, que vivem na instantaneidade da internet.

Mas vamos ao que interessa. A convite da Dão Sul, um dos maiores grupos vinícolas lusitanos, e da importadora Expand, passei quatro dias em Portugal, cruzando o país para conhecer as principais regiões produtoras de vinho. Enfrentei uma agenda complicadíssima, que me obrigava a comer sem parar a maravilhosa culinária desse país. E dá-lhe leitão da Bairrada, queijo da Serra da Estrela, bacalhau preparado de várias formas, bochecha de porco, alheiras e embutidos típicos, polvo e outros frutos do mar, azeites extra-virgem, e, claro, sobremesas à base de amêndoas e ovos... um sacrifício atrás do outro. Pior: para cada prato sempre havia ao menos um – quando não vários -- rótulos para acompanhar. Um massacre.

Brincadeiras à parte, o fato é que considero Portugal um verdadeiro prodígio enogastronômico. Um país tão pequeno geograficamente e em tamanho da população conseguiu desenvolver uma culinária riquíssima – melhor dizendo, várias culinárias, pois cada recanto tem seus pratos únicos. Com os vinhos, ocorre o mesmo. Visitei a Estremadura, o Dão, a Bairrada, o Alentejo e o Douro (foto acima que tirei a partir da Quinta das Tecedeiras). Essas são as áreas mais conhecidas, mas Portugal tem 34 regiões vinícolas e mais de 500 uvas autóctones, variedades que só existem por lá. Um tesouro enológico de valor ascendente em um mundo cansado de tantos Cabernets e Chardonnays monotonamente parecidos.

A Dão Sul desenvolve um projeto que ao mesmo tempo moderniza e permite que essas peculiaridades de Portugal continuem vivas – e que sejam conhecidas fora das fronteiras lusitanas. O grupo, agressivo e moderno nos negócios, está comprando ou construindo vinícolas em todas as principais áreas produtoras. Em cada local, procura explorar as castas típicas e respeitar o estilo regional, porém adicionando um toque internacional que é marca do enólogo e sócio Carlos Lucas.

Desde o simples e saboroso Cortello, um vinho da Estremadura que é vendido no Brasil por R$ 16, até os top Four C, Encontro 1 e Pedro&Inês, todos acima de R$ 300 a garrafa, é possível notar a mão detalhista e a assinatura de Carlos Lucas. Seus rótulos são exportados para os quatro cantos do globo. Assim a Touriga Nacional, a Baga, a Bical e tantas outras uvas interessantes começam a freqüentar as mesas de outros países europeus, asiáticos, dos EUA e do Brasil. Portugal vai voltando a ser uma potência ultramarina – pelo menos na enogastronomia. Sorte de todo mundo e do mundo todo, que se deixa conquistar com prazer.

No próximo texto: o leitão da Bairrada, o queijo Serra da Estrela e os vinhos certos para acompanhar essas iguarias.

sábado, 3 de maio de 2008

Um que a mais


Entardecer do outono. Varanda de casa. O céu azul a perder de vista, uma brisa fresca e constante, o cheiro da terra e das plantas molhadas pela chuva que ontem castigou São Paulo – mas a quem hoje é preciso dar o devido crédito pelo ar mais limpo e pela terra úmida. Da cozinha vem o aroma de um ossobuco que comecei a preparar duas horas atrás. Sinto o alho, a pimenta, o bacon. Estou bem acompanhado por um Dolium Escolha 2005, um branco português da uva autóctone Antão Vaz – de onde eles tiram esses nomes? Branco encorpado, untuoso, com pegada, muito melhor em tardes frescas do que nos dias de calor excessivo de verão. No meio de tanta correria, um momento mais relaxado para apenas deixar-se estar e sentir.

Até que lá vou eu pegar o notebook e escrever mais um texto do blog.

Seguindo o que prometi no último post, o assunto da vez é a dificuldade de beber vinhos realmente bons. Não estou falando aqui dos rótulos caríssimos, dos grandes ícones de Bordeaux, Borgonha, Toscana ou Califórnia. Nada disso. Há ótimos produtos que podem satisfazer mesmo os mais enjoados e exigentes sem custar fortunas. Esse Dolium, que sai ali pelos R$ 80 na importadora Adega Alentejana, é prova disso. Eis um branco muito, muito bem feito, com acidez refrescante que chama para o próximo gole, com fruta e madeira convivendo em harmonia, encorpado e refinado. Com o tempo, os aromas cítricos mais evidentes do vinho cedem lugar a um cheiro que lembra curau e milho verde. Delícia. Já tomei Borgonhas quatro vezes mais caros que não tinham essa qualidade. O Dolium não é, com certeza, um dos grandes brancos do mundo. Com três anos, está na hora exata de ser bebido -- acho que não resistiria muito além dos cinco anos de vida. Mas é um vinho que tem um “que” a mais. Tudo funciona, tudo encaixa, e ainda há algo surpreendente, como esse bendido milho verde no nariz.

Ah, como é raro um vinho assim. E como dá satisfação quando, ao primeiro gole, percebe-se que aquela bebida proporcionará um prazer enorme até a última gota.

Recentemente, tomei um punhado de vinhos que considero que têm esse tal “que” a mais, como o Dolium. São rótulos que indico enfaticamente.

Pelo critério custo/benefício, no topo da minha lista está o Double T 2002 (Vinci), da vinícola Trefethen, um californiano fantástico, com força e classe andando de mãos dadas – juntar potência com elegância é, talvez, o critério básico que para mim faz um vinho ser excelente. Esse corte bordalês tem muita fruta vermelha e cassis, com toques de tabaco, chocolate e especiarias – está tudo ali, direitinho. Com o dólar em baixa, sai por pouco mais de R$ 80, o que o torna talvez a melhor oferta nessa faixa de preço em se tratando de vinhos californianos à venda no Brasil.

O espanhol Roda II 2002 (Expand) é uma mistura de Rioja tradicional com moderno. Muita madeira, mas muita fruta também, criando um conjunto harmonioso e irresistível. Impossível não gostar. Sai por R$ 288,00 – é caro, mas é um senhor vinho. O uruguaio Família Deicas Premier Cru Garage 2000 (Expand) é talvez o melhor tinto da América do Sul que já provei. Para mim, ganha de garrafas bem mais badaladas do Chile e da Argentina. Surpreendente do começo ao fim. Custa R$ 285,00, o que o torna igual ou mais barato do que Clos Apalta, Don Melchor, Cobos e outros medalhões que têm bem mais nome e notas de Wine Spectator – e menos qualidades como bebida.

Outros vinhos que tomei algumas vezes e que para mim também são memoráveis incluem o Tarapacá rótulo negro 2001, que parece um ótimo Cabernet Sauvignon californiano e pode ser encontrado por cerca de R$ 85; o Valduero Crianza 2003 (Grand Cru), belo exemplar da região de Ribera Del Duero, vendido em torno de R$ 100; o Quinta do Crasto Vinhas Velhas – as safras 2003, 2004 e 2005 são todas deslumbrantes. Sai por cerca de R$ 120 a garrafa, mas às cegas bate muito vinho de R$ 400 que tem por aí. Também digno de nota é o Charme, do Niepoort (Mistral), um Douro com elegância da Borgonha. Custa ao redor de R$ 300. E vale.

Esses são todos vinhos que tiveram a felicidade de acertar em cheio, pelo menos para o meu gosto, e por isso ficaram gravados na minha memória da melhor forma possível. Nenhum deles está entre os grandes ou os mais caros do mundo, mas estão entre os meus preferidos. Em contrapartida, poderia citar muitos que decepcionaram, mesmo de produtores de altíssimo nível. Certa vez tomei um Angélica Zapata Merlot 2000, da Catena, minha vinícola preferida da Argentina (seus rótulos são importados pela Mistral, mas esse Merlot não vem para o Brasil, foi comprado em Buenos Aires). Era simplesmente um veludo na boca, rendondo, elegante. Há pouco tempo, quando estive novamente em Buenos Aires, comprei outra garrafa, porém da safra 2002 – teoricamente um ano muito melhor em Mendoza. E eis que o vinho decepcionou: estava pesadão, enjoativo, com uma fruta exagerada e grosseira e madeira idem. Pois é, o Catena errou a mão. É raro com um produtor do calibre dele, mas às vezes acontece. A vinícola tinha uma safra melhor para trabalhar, mas aí extraiu fruta demais, usou madeira demais, sei lá... só sei que na safra pior o Angélica Zapata Merlot estava vários degraus acima de qualidade.

Ou posso citar exemplos de vinhos bem-feitos, mas que não têm o “que” a mais que os tornaria dignos de lembrança. O Nottage Hill Shiraz 2005 (Aurora), da Austrália, é uma boa pedida abaixo de R$ 50. Muito macio e prontíssimo para a taça, mas... falta algo. Você bebe, acha bom, mas passa batido. Não encanta, não surpreende, não tem classe. É bem feito, mas é padrão demais, sem nada especial.

Agora vou olhar meu ossobuco, que a noite promete. E escolher o vinho que deve acompanhá-lo, para não correr o risco de ficar sem assunto para o próximo post.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Sobre Buenos Aires e grandes vinhos


Voltei de uma recente viagem a Buenos Aires com um par de garrafas na mala e muitas considerações a fazer sobre a cultura de vinhos da Argentina. Ou seria o contrário? Bem, as considerações são as seguintes: os portenhos amam vinhos, mas ainda vivem uma fase de transição entre antigos hábitos e outros mais modernos; e a oferta de rótulos argentinos não pára de evoluir.

Explico. Assim que desembarquei em Buenos Aires, o taxista que me levou do aeroporto ao hotel estava com o rádio ligado. O que passava era um programa no qual o entrevistador conversava com algum enólogo para dar dicas simples: por que a temperatura correta de serviço é importante, por que a maioria dos vinhos não deve ser guardada por muito tempo, algumas regras básicas de harmonização com comidas etc. Tudo de um jeito direto e sem pretensão, sem pompa.

O entrevistado – infelizmente não me recordo quem era – jamais soava como um especialista falando coisas esotéricas que só poderiam ser compreendidas após anos de estudo. O que havia ali era um profissional do ramo que mostrava, baseado no bom senso, alguns cuidados para melhorar a experiência com a essa bebida que está tão entranhada na cultura da Argentina.

Mas se o vinho faz parte dos hábitos desse país, ainda assim há necessidade de um programa de rádio como esse? Se há. Bastaram quatro dias em Buenos Aires para que eu não tivesse dúvidas sobre isso. Em um restaurante tradicional (e delicioso) como o La Estancia, a carta de vinhos era apenas razoável e as taças ruins. Aceito ambas as coisas, pois se trata de um restaurante de classe média que permanece há décadas igual no serviço de vinhos -- o que talvez não seja louvável --, mas igual também na estupenda qualidade de suas carnes. O problema mais grave, mas também o mais fácil de arrumar, foi que a garrafa chegou à mesa quente – bem quente.

São coisas da velha Argentina, que durante décadas consumiu enorme quantidade de vinhos oxidados e de baixa qualidade. Hoje o nível médio subiu demais, porém o serviço e os hábitos ainda precisam acompanhar esse salto. Com iniciativas como o programa de rádio que escutei no táxi, acho que é apenas uma questão de tempo para isso acontecer. O próprio garçom do La Estancia, quando reclamei da garrafa quente, reconheceu prontamente o problema e trouxe um baldinho com gelo para fazer a correção. Em cinco minutos, o vinho chegou a alguma coisa próxima dos 18 graus. O velho garçom se desculpou e foi simpático toda a noite. Provavelmente se eu tivesse feito igual reclamação há, digamos, dez anos, teria escutado uma daquelas respostas atravessadas -- “Es asi que se bebe viño acá, hijo.”

A consideração dois é sobre a oferta de vinhos da Argentina. Há lojas e mais lojas espalhadas pela cidade, com uma variedade muito grande de rótulos. Contudo, 95% são de produtos argentinos mesmo. Isso acontece em quase qualquer país produtor. É meio limitante, mas não há remédio. Nem sempre compensa comprar vinhos em Buenos Aires, porque as garrafas que chegam dos hermanos estão entre as poucas que desembarcam no Brasil sem automaticamente triplicar seu preço. Pode acontecer até de determinado produto estar mais em conta por aqui. Vi isso com o excelente Catena Estiba Reservada, um vinhaço que a Mistral negocia por algo ao redor de R$ 150 e que em Buenos Aires muitas vezes sai pelo equivalente a R$ 200. Essa é uma exceção (não a única, contudo). Como a cotação está muito favorável para nós – o Real vale atualmente quase o dobro do Peso --, na maioria das vezes vale a pena trazer garrafas. Só que é preciso pesquisar. Quem sair enfiando na mala tudo o que vê pela frente sem saber quanto custa no Brasil arrisca-se a ficar no prejuízo.

Em relação à qualidade dos vinhos argentinos, já escrevi muito sobre isso recentemente. O nível subiu de maneira espetacular nos últimos dez anos e há um punhado de exemplares maravilhosos de várias uvas -- Malbec à frente, mas também Cabernet Sauvignon e cada vez mais Bonarda, Tempranillo, Merlot, Pintot Noir, Chardonnay, Torrontes e outras. Mas quem preza a elegância sobre a potência ainda precisa garimpar bem para ser feliz.

Como ressalva, vale dizer que produzir vinhos realmente grandiosos não é tarefa fácil nem na Argentina e nem em lugar algum, incluindo aí até a França. Quanto mais você conhece de um assunto, mais chato fica. Eu ainda não conheço tanto assim, mas já estou chatíssimo. Hoje em dia posso gostar de muitos vinhos, mas são poucos os que têm aquela coisa a mais que torna a experiência de bebê-lo realmente marcante, memorável. Na maioria das vezes, algum defeito logo salta à vista e incomoda um pouco.

Foi o que aconteceu com uma das lembrancinhas que trouxe de Buenos Aires, um Finca Los Nobles Cabernet Bouchet 1997 – isso mesmo – da vinícola Luigi Bosca. Pelo tratamento que recebeu, incluindo passagem de 24 meses em barris de carvalho de Troncais, esse pode ser considerado um superpremium de uma época em que quase não existiam vinhos superpremium na Argentina. Estava em forma após 11 anos, era aveludado e elegante, porém a madeira ofuscava completamente a fruta. Uma pena. Era quase como um prato feito com todo esmero e que tinha tudo para ser excelente, até que o chef erra a mão e coloca mais tempero do que o indicado.

Mas a dificuldade de fazer – e, mais ainda, de beber -- grandes vinhos fica como tema para o próximo post. Até lá.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

De volta, com a lente ainda mais distorcida


Quem é vivo, de vez em quando aparece... Após um longo intervalo, o Carta de Vinhos volta à ativa. Nesse hiato em que o blog ficou sem atualização, aconteceu uma coisa importante. Para colocar o assunto em dia e começar a tirar a ferrugem das mãos, vou tratar aqui apenas de uma notícia que diz respeito ao autor desta página virtual e que considero fundamental que todos saibam.


Seguinte: sou o responsável (um dos responsáveis, na verdade) por fazer o próximo catálogo da Expand, que deve chegar aos consumidores até o final de abril. Acho importante dizer isso às claras, para que todos conheçam essa minha nova ligação profissional com a importadora de Otávio Piva de Albuquerque.



Isso reduz minha independência para escrever este blog?


É claro que sim.


Vou procurar separar ao máximo as duas atividades. O blog é o blog, meu trabalho para a Expand é outra coisa. Prometo ser o mais imparcial possível. Se eu tomar um vinho da Expand e não gostar, vou dizer. Continuo achando que os preços cobrados por seus rótulos são muito altos, como infelizmente são altos os preços praticados por todos que comercializam vinhos do Brasil. Não vou deixar de falar de produtos de importadoras concorrentes. Não vou dizer que bebo Rio Sol todos os dias. Mas é claro que tendo um vínculo e desenvolvendo uma relação profissional com a equipe da Expand eu não tenho mais a mesma garantia de imparcialidade de antes. Admito isso.


Vou fazer o possível para erguer um muro entre as duas coisas. Adoro escrever este blog e não vou transformá-lo em um local de propaganda não-declarada. Mas que alguma coisa mudou, mudou. Foi decisão minha e assumo as conseqüências. Assim como é decisão minha tornar isso, vamos dizer, público.


Talvez a imparcialidade e a objetividade jornalística sejam quase uma utopia. Todos somos seres humanos com amizades, inimizades, interesses, mágoas, dívidas, laços pessoais, gostos e preferências. Todos temos nossas crenças e opiniões próprias, subjetivas. A lente através da qual cada um enxerga o mundo tem suas distorções particulares -- sempre tem. Isso vale para pessoas e vale para empresas de mídia também.


É razoável supor que eu não consiga ser 100% imparcial, mas posso tentar ser 100% honesto. Para isso, basta eu não omitir informações importantes. Declarando minhas relações profissionais que podem gerar conflito de interesse com o que escrevo aqui, o leitor tem os elementos necessários para fazer seu próprio julgamento e avaliar se o que declaro está enviesado ou não.

O contrário também vale: o catálogo não deve ser entendido como algo relacionado ao Carta de Vinhos. Acho que desenvolvemos muito conteúdo útil, pertinente e interessante nesse trabalho para a Expand. As informações são precisas e fiz muita pesquisa séria para escrever o que escrevi nas 130 páginas que em breve muitos de vocês terão em mãos. Creio que produzimos um material de referência. Estou orgulhoso desse produto (espero que o resultado final saia mesmo tão bom quanto parece que ficará). Mas é claro que também se trata de um catálogo de vendas -- uma peça de marketing, portanto -- com tudo que isso implica. É algo diferente do que faço aqui no blog.


Bem, por hoje foi isso. No próximo post vamos falar novamente do que interessa -- vinhos -- e perder menos tempo com o autor.