sábado, 8 de dezembro de 2007

Tempo de brancos

Termômetros subindo, dias cada vez mais longos, temporais ao final das tardes e um monte de mosquitos infestando São Paulo, ao menos aqui na minha casa, na zona Oeste da cidade. Pois é. Já dá para sentir no ar que o verão vem aí, com tudo o que traz de bom e de ruim. Clima que deveria repelir os enófilos tanto quanto atrai os pernilongos, certo? Errado, erradíssimo. Há sempre um tipo de vinho para cada ocasião. Ou, nesse caso, vários tipos. É tempo de brancos, de rosés e de espumantes. E é tempo de os brasileiros aprenderem a apreciar outros gêneros dessa bebida além dos onipresentes tintos, que representam nove em cada dez garrafas de qualidade vendidas por aqui. Incrível que até no Nordeste do país, onde faz calor e sol o ano todo e os frutos do mar são a base da boa culinária, consome-se muito mais tintos do que brancos. Não faz sentido algum.

Os brancos têm diversas vantagens no verão. Ser servido frio é apenas a primeira delas. Mas atenção: ao contrário de nossa cerveja, os vinhos não devem estar gelados demais, ou boa parte de seu sabor se perderá. A temperatura não pode ficar abaixo de uns 8 graus para os exemplares mais leves ou simples, algo que sem dúvida os cervejeiros considerariam quente demais. E os produtos mais ricos e encorpados devem ser servidos até a cerca de 13 graus. No caso do fermentado de uvas, o termo “estupidamente gelado” é literal. Quem tomar um grande Mersault da Borgonha a 1 ou 2 graus de temperatura vai perder seus aromas explosivos, pois a essa temperatura o vinho está “fechado”, e não sentirá boa parte de seu sabor.

Duvida? É só fazer a experiência. Coloque um pouco de um bom branco que está na sua geladeira, portanto a uns 5 ou 6 graus, em duas taças. Leve uma delas ao congelador por 15 minutos e deixe a outra em cima da mesa pelo mesmo tempo. Depois sinta o cheiro e dê um gole de cada uma delas. O vinho que ficou de fora estará a uns 10 ou 12 graus e mostrará todos os seus aromas e sabores. O que estava no freezer terá perto de zero grau e vai ficar quase insípido e inodoro. Basta um Chardonnay simples da Argentina ou do Chile para fazer esse teste, mas quanto melhor o produto, mais gritante será o contraste. Na verdade, se a experiência for feita com dois brancos – um muito bom e outro bem simples – a coisa fica ainda mais interessante. Será fácil, mesmo às cegas, descobrir qual é o rótulo bom e qual o vagabundo entre as taças que ficaram fora do congelador. Mas as duas que estão a quase zero grau terão praticamente o mesmo cheiro e o mesmo gosto – quer dizer, nenhum. Conclusão: a melhor forma de jogar seu dinheiro fora é comprar um glorioso branco de 500 reais e tomá-lo “estupidamente gelado”. Ele vai ficar muito parecido a um produto de 9,90 reais.

A outra vantagem dos brancos é a perfeita harmonização com refeições leve, diversos tipos de salada, carnes brancas em geral, peixes e frutos do mar. O tipo de comida que as pessoas procuram no verão e, cada vez mais, o ano inteiro. Mas o que muita gente não sabe é que os brancos casam muito bem com outros alimentos como, por exemplo, uma tábua de queijos. Na verdade, combinam melhor com queijos do que a maioria dos tintos. Surpreso? Incrédulo? Não acredite em mim, faça o teste. Outro dia abri uma garrafa do Catena Alta Chardonnay 2004, o melhor branco do melhor produtor da Argentina. Está no auge, perfeito para ser bebido neste verão. Um vinho untuoso, rico, com aromas amanteigados que são típicos de chardonnays que sofrem a chamada fermentação malolática, um processo que transforma o ácido málico em ácido láctico, o mesmo presente em laticínios. Experimentei o Catena Alta com um queijo brie. Nenhum tinto harmonizaria melhor. O queijo é delicado e o vinho branco respeita isso e não se sobrepõe ou domina o palato. A acidez do chardonnay corta a gordura excessiva do brie, enquanto os sabores provenientes da fermentação malolática encaixam com o amanteigado do queijo como uma porca ao seu parafuso. É exato.

Por que não uma tábua de queijos – ou massas com queijo, tortas, quiches etc. -- com vinhos brancos fortes, como tantos chardonnays que lotam as prateleiras de importadoras e lojas especializadas? Da mesma forma, é possível fazer harmonizações interessantes com espumantes mais encorpados, que podem acompanhar refeições inteiras ao invés de apenas iniciar os trabalhos. Tomei recentemente o Brut Millésime 2004 da Miolo, que também está no ponto para ser consumido agora. Os espumantes nacionais são bons e esta garrafa estava deliciosa. Iria bem com uma mesa de queijos, frios mais delicados (nada de salame ou copas condimentadas) e pães. Como este Brut Millésime tem os aromas de leveduras comuns a tantos espumantes, a compatibilização com pães e torradas é óbvia. Vá nessa, sem medo de ser feliz.

Recentemente, tomei ainda dois vinhos absolutamente contrastantes entre si que mostram como há imensa variedade de estilos e propostas entre os brancos. O chardonnay chileno Sol de Sol 2003, da vinícola Aquitania, esteve à altura da fama de melhor branco da América do Sul. Apesar de caminhar para o quinto ano de vida, apresentava poucos sinais de evolução -- algo raro nos brancos do Novo Mundo, que geralmente devem ser consumidos logo. O equilíbrio entre a acidez, a fruta e a madeira estava perfeito. Um vinho rico e exuberante, mas ao mesmo tempo refinado. Já o Clos du Papillon Domaines de Baumard 2002, um exemplar do Vale do Loire feito com a ótima uva chenin blanc, é seco, austero e mineral até o osso. Aqui não há nada de amanteigado. Estilisticamente é um vinho de guarda, que vai longe. Reservado ao nariz, mas encantador na boca, imagino que deve casar muito bem com ostras cruas, para quem gosta, ou mariscos feitos sem molhos fortes. Esses franceses sabem das coisas.

Você não consegue impedir que o verão traga nuvens de mosquito sobre São Paulo e que os temporais tornem o trânsito da cidade ainda mais caótico. Mas ninguém precisa se privar de bons vinhos só porque os termômetros estão acima de 30 graus. É tempo de brancos, afinal.

PS.: o Catena Alta e o Domaines de Baumard são da importadora Mistral; o Sol de Sol é vendido pela Zahil, que incorporou a antiga Wine House.