quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

O português do ano


Após um longo intervalo devido ao excesso de trabalho, estou de volta – e sem trazer um novo debate sobre aquele famoso crítico americano, conforme prometido. Desta vez quero falar de vinhos, mas por meio de um outro personagem: Carlos Lucas, que foi eleito enólogo do ano pela Revista de Vinhos de Portugal. Tive o prazer que conversar com Lucas recentemente. Ele também é responsável pelos rótulos da ViniBrasil, parceria da Expand com a Dão Sul no Vale do Rio São Francisco, no Nordeste brasileiro, uma região absolutamente inusitada para cultivar uvas viníferas.

Já provei, em ocasiões anteriores, diversos produtos que saíram das mãos de Lucas, que trabalha para a Dão Sul. Sobre um deles, o Quinta de Cabriz Escolha Virgílio Loureiro, comentei recentemente no post “Matizes” (ver abaixo). Já provei também o Pedro & Inês, este um Dão bem mais moderno, feito com um corte de Baga e Alfrocheiro, que é simplesmente delicioso; e o Four C, também moderno e muito sedutor. Infelizmente, ambos são bem caros: R$ 338 e R$ 368, respectivamente, na Expand.

De qualquer forma, Lucas é sem dúvida o enólogo da nova geração que melhor trabalha a região do Dão, que estava ficando para trás em relação ao Douro por ter sido lenta em se modernizar. É interessante a comparação que ele faz das três mais famosas áreas vinícolas portuguesas. “O Douro dá vinhos em um estilo muito internacional; o Alentejo, vinhos tipicamente portugueses; e o Dão, uma mistura dos dois”, diz. “Um ponto importante de destacar é que o Dão proporciona vinhos para a mesa de refeições. Na hora de escolher um rótulo português para acompanhar comida, nenhum técnico duvidaria em optar por um Dão.” Com o que, embora não seja técnico, concordo inteiramente. Boa parte da explicação para isso está na acidez mais acentuada, que ajuda muito na harmonização com comida. Lucas explica que o mosto das uvas no Dão geralmente apresenta pH de 3.4, enquanto no Douro está em 3.8 na mesma época.

Por razões óbvias, o vinho português sempre foi apreciado no Brasil. Mas no resto do mundo, em especial nos Estados Unidos, vinho português era apenas os fortificados do Porto. E só. Isso começou a mudar recentemente, de uns três ou quatro anos para cá, quando os produtos de mesa da terrinha entraram no radar dos críticos influentes – não vou citar o nome do dito cujo aqui outra vez, mas é ele mesmo e aquela outra revista de sempre. Só que os tais críticos concentraram seu trabalho no Douro, porque já conheciam o vinho do Porto que sai dali e porque os produtores locais estavam mais bem organizados para fazer um trabalho de relações públicas efetivo. Agora, parece que isso vai mudar. Lucas me contou que já estão marcadas para as próximas semanas visitas da equipe da Wine Spectator e de Mark Squires, que trabalha com Parker (pronto, falei), para conhecer os produtos do Dão. Pelo que conheço do gosto dessa turma, as notas talvez não sejam tão altas como as que o Douro tem conseguido. Mas acredito que serão bastante boas, com vários produtos acima de 90 pontos. Se for assim, será merecido.

Já no Vale do Rio São Francisco... bem, Lucas me falou com entusiasmo e brilho nos olhos do potencial do Nordeste brasileiro para vinhos. E definiu seu trabalho na ViniBrasil como “o projeto da minha vida”. Parece estranho, mas após uma hora de bate papo com ele, dá para entender. Lucas adora experimentar. Isso fica claro em duas de suas obras-primas: o Dourat, mistura de Touriga Nacional do Douro com Grenache do Priorato (Espanha), do qual são feitas apenas 1 200 garrafas por ano. Ou o Pião, um corte de Nebbiolo do Piemonte (Itália) com Touriga Nacional do Dão que proporciona apenas 1 000 garrafas anuais. Nunca provei nenhum dos dois, mas sei que ambos são caríssimos e badaladíssimos, verdadeiros vinhos “cult” disputados pelos aficionados de várias parte da Europa. Essa idéia de cortes de uvas originárias de países diferentes mostra como Lucas gosta de inovar e quebrar tradições. Acho isso sensacional. Quero que a boa tradição seja mantida em cada detalhe para que eu possa beber um vinho igual ao que se fazia há um século, igual ao que meus avós e bisavós tomaram. Mas quero também que, paralelamente, continue a ocorrer experimentações para que surjam coisas novas. Algumas serão ruins, mas outras podem ser maravilhosas.

O que está saindo do Vale do São Francisco, hoje, realmente não dá para chamar de maravilhoso. O Rio Sol é um vinho simples e o Paralelo 8, top do ViniBrasil, é apenas razoável para meu gosto. Os espumantes são notadamente inferiores aos da Serra Gaúcha. Mas aquele é um laboratório e tanto. Lucas diz que a uva Syrah adaptou-se muito bem e que, para sua surpresa, os mais recentes resultados com a Tempranillo estão causando entusiasmo. Lucas também detectou que o solo da região é livre da maioria das pragas que ataca as parreiras de uvas viníferas. Assim, planeja fazer um vinho com uvas de “pé franco”, como se chamam as plantas sem enxerto. Hoje quase todas as vinhas da Europa, Estados Unidos, Austrália etc. são de pés enxertados sob uma base (raiz) de parreira de uva de mesa (não uva vinífera), que é uma espécie resistente à filoxera, uma praga que arrasou os parreirais europeus no século XIX.

Se Lucas lograr produzir grandes vinhos no semi-árido nordestino, vai merecer o prêmio de melhor enólogo do mundo, não apenas de Portugal. Ele acha que pode. Tem méritos para merecer crédito.