quarta-feira, 16 de julho de 2008

A estrela de Portugal


Há dias que começam bem. O último 6 de junho foi um deles. Mal me vi de pé, fomos para a Quinta da Lagoa, um pequeno produtor do famoso Queijo da Serra da Estrela. Esse laticínio é, sem dúvida, um dos muitos tesouros gastronômicos de Portugal. Curiosamente, a produção não ocorre exatamente na serra que lhe dá nome, mas em uma área próxima, mais ao pé das montanhas.

Entrar na Quinta da Lagoa é um pouco uma viagem ao passado – seja pela rusticidade dos móveis e objetos, seja pela calma acolhedora e vontade de puxar prosa dos proprietários. Quem está à frente do negócio é Pedro, um senhor simples, direto, honesto e meio bruto – seu caráter parece combinar como todo o ambiente à volta --, mas ao mesmo tempo com um profundo conhecimento da arte de fazer laticínios.

A fabricação na quinta começou com a avó. À época, o queijo só saia bom mesmo nos meses em que a temperatura e umidade eram adequadas. Hoje, com alguns equipamentos, a produção atinge qualidade soberba em todas as estações. Mas engana-se quem pensa que Pedro é a favor de muita tecnologia. Ele reclama – e como – das exigências de assepsia que vigoram atualmente em Portugal. “É um exagero. Vão inviabilizar a fabricação de queijos bons”, diz. A queixa é explicada pela constatação de que todo o ambiente à volta contribui de alguma forma para a qualidade final do produto.

De fato, alguns queijos de qualidade excepcional não conseguem ser feitos em outros locais além de sua área de origem, por mais que todo o processo de fabricação seja rigorosamente o mesmo. Mais que isso: há relatos de fazendas de onde saiam laticínios incríveis e que "perderam a mão" depois de passar por uma modernização que impôs máquinas onde antes o trabalho provinha do suor humano e que instituíram um ambiente 100% esterilizado onde antes havia apenas uma área razoavelmente limpa (no máximo). Há um terroir do queijo? É bem possível. O queijo é resultado de uma ação química que envolve organismos vivos. É razoável supor que em certos locais esses organismos sejam diferentes – ou se comportem de forma distinta – do que em outros. Não sei se a explicação é essa mesma. Mas tente fazer um queijo como o da Quinta da Lagoa em outra região. Impossível.

O queijo da Serra da Estrela é feito de leite de ovelha – são necessários sete litros para uma unidade de meio quilo, em média – e temperado com sal e flor de cardo. Mais nada. O restante do milagre que origina essa iguaria fica por conta da destreza e do conhecimento de gente como Pedro. E talvez do tal terroir.

Naquela manhã experimentamos queijos de diversas idades – uns mais velhos e duros, outros derretendo como um requeijão. Todos deliciosos. E tomamos vinho tinto, embora a harmonização clássica – e divina – seja com Porto. Ali também descobri que o hábito de abrir o queijo da Serra da Estrela pelo topo e comer seu conteúdo cremoso com colher “é coisa da gente de Lisboa”. Na região mesmo, é na faca.

Tradição é tradição, e quem faz é que sabe. Mas nesse caso fico com Lisboa. Acho que a colher funciona muito bem. Para completar, vou ser do contra também na harmonização. Não há o que contestar em relação ao vinho do Porto, que casa de maneira genial com o laticínio. Mas, sem desprezar o Porto, gostaria de experimentar o Serra da Estrela com um bom branco fermentado em barrica, daqueles encorpados e, de preferência, já com alguns anos nas costas. Adoro harmonizar brancos com queijos – acho que um respeita mais o outro do que com tintos. Deve ficar muito bom com o Serra da Estrela.

Quem não quiser correr riscos, vá pela tradição. Em Portugal, essa escolha nunca é errada. E muitas vezes é a única: Pedro não admitiria servir um branco ali com seus queijos nem que eu implorasse.