sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Um casamento turbulento


Quem não gosta de queijo? Melhor dizendo: quem não ama queijo? Esse alimento tem tantas variantes que é praticamente impossível não encontrar algumas que sejam irresistíveis a seu paladar. Para o meu, há dezenas e dezenas. Na cabeça de muita gente, pensou em queijos, pensou em vinho... tinto. Isso não está necessariamente errado, mas tampouco é uma verdade absoluta. O propósito deste post é, por um lado, ampliar o horizonte de harmonizações com esse maravilhoso laticínio; e, por outro, mostrar que o casamento entre queijos e vinhos é uma relação bem mais complicada do que reza o senso comum.

Um recente artigo na revista de domingo do jornal New York Times vai a fundo na questão. O ponto central do texto é que queijos são muito mais fáceis de combinar com brancos do que tintos. Para o autor, Florence Fabricant, o hábito de tomar tintos com queijos é uma herança ultrapassada de antigos costumes europeus. "Minha teoria pessoal é que a fixação por vinhos tintos com queijo é um conceito inglês victoriano. Os jantares em que mulheres participavam eram servidos com vinhos brancos, geralmente riesling. No final da refeição, os homens se retiravam para a biblioteca para beber vinhos tintos e porto com queijos, nenhum dos quais eram considerados apropriados para as mulheres."

Pode ser, embora até onde eu saiba o vinho do Porto sempre tenha sido apreciado e consumido pelas mulheres, ao menos no Brasil. Ainda no mesmo artigo, Fabricant conta que Aubert de Villaine, proprietário do mítico Domaine de la Romanée-Conti, invariavelmente prefere um branco poderoso, como o seu Le Montrachet, com queijos. Não apenas por achar que combina melhor, mas também por considerar que muitos laticínios prejudicam seriamente a percepção dos gostos dos tintos. "Não quero meus grandes vinhos arruinados por queijo", Villaine diz na reportagem. Vindo de quem vem, essa é uma declaração forte. Um estudo feito pela Universidade da Califórnia parece dar razão com base científica ao que o francês defende por puro bom gosto. Dois meses de pesquisas de análise sensorial com voluntários em um painel envolvendo oito queijos e oito tintos mostrou que essa mistura mais suprime do que melhora a percepção dos sabores dos vinhos. É a anti-harmonização, porque no casamento perfeito de bebidas e comidas o que se busca é que um melhore a percepção do outro.

Então vinho tinto não combina com queijo? Não, não, não. Nada disso. A resposta para essa pergunta é que é preciso selecionar o rótulo certo para cada tipo de queijo. Caso contrário, ou estraga-se a bebida ou o prato. Sabendo escolher, existem diversos tintos que harmonizam bem com muitos queijos. Mas, sim, muitas vezes é mais fácil achar um branco para esse tipo de comida.

Aqui vale a mesma regra que rege qualquer compatibilização de bebida com alimentos. Um não deve se sobrepor ao outro. Queijos bem encorpados, como um belo parmesão, podem combinar com tintos, e até com tintos encorpados, como um Amarone -- para ficar tudo na Itália --, por exemplo. Na média, contudo, tintos mais leves e com menos taninos, como Beaujolais e alguns pinot noirs, são mais fáceis de combinar.

Já os queijos azuis, tipo Gorgonzola, matam qualquer tinto. Eles devem combinar com vinhos doces de sobremesa ou fortificados como Porto e Madeira. É a chamada harmonização por contraste. Para quem é novato no mundo da enofilia parece estranho, eu sei, mas isso é comum na gastronomia. Pense no corriqueiro “Romeu e Julieta”, a nossa goiabada com queijo. É o mesmo princípio. E o próprio apelido dessa mistura popular sugere um caso de amor entre os opostos. Tome coragem e faça o teste. A primeira vez em que deixei um Roquefort derreter na língua e em seguida enchi a boca com um gole de Sauternes foi como ter uma iluminação. Imediatamente percebi que o mundo era um lugar melhor do que eu supunha até então.

Num recente texto sobre o assunto (A Wine and Cheese Extravaganza) em seu blog, Eric Asimov, o crítico de vinhos do jornal New York Times, conta sobre um evento beneficente de harmonização que ele comandou com seu amigo David Grotenstein, um negociante de laticínios nos Estados Unidos que é membro da American Cheese Society (Sociedade Americana do Queijo). Coube a Eric escolher seis vinhos e a David selecionar meia dúzia de queijos que deveriam harmonizar com as garrafas eleitas. O blogueiro do NY Times optou por um espumante, dois brancos, dois tintos e um vinho de sobremesa. Os queijos foram todos americanos -- para quem não sabe, hoje os Estados Unidos produzem queijos excelentes, a exemplo do que fazem também com os vinhos.

Aqui vai um resumo da história. O espumante era um champanhe simples, o Ployez-Jacquemart, bastante seco e com toques cítricos. Para acompanhar, foi escolhido o Truffle Tremor, um queijo de cabra trufado. Não é porque o próprio Eric Asimov conta em seu texto que a harmonização não funcionou que vou dizer aqui que isso não poderia dar certo. Mas a verdade é que não poderia mesmo. Trufa é algo poderoso demais, que domina o olfato e o paladar. Como um espumante simples poderia resistir? Aqui teria de ser um grande branco da Borgonha ou um chardonnay top de linha do Novo Mundo com já alguns anos nas costas. Ou mesmo um tinto da Borgonha envelhecido, quem sabe. Mas o propósito do evento era ficar em vinhos relativamente baratos, até 30 dólares, e nesses termos a harmonização com um queijo trufado não é das mais fáceis. A segunda compatibilização foi um Muscadet (um vinho branco) com um queijo de ovelha. Eric achou perfeito. Depois, o Bodegas Gurrutxaga, um txakoli, um branco da região basca. Com apenas 10,5% de álcool, esse vinho tem acidez vibrante e delicadeza para harmonizar com um queijo tipo Camembert.

Em seguida, os tintos. O Touraine Clos Roche Blanche 2006 é feito com gamay, a mesma uva dos Beaujolais. Portanto, um produto mais leve e frutado. Harmonizou com um queijo tipo alpino de leite de vaca. Eric diz que funcionou. Confesso que não fiquei convencido. Um Crozes-Hermitage 2006 de Jean-Claude Marsanne, do Vale do Rhône, escoltou um queijo forte e encorpado. Aí já faz mais sentido. Por fim, um Rivesaltes vin doux naturel from Domaine de Rancy de quatro anos de idade, um vinho de sobremesa que lembra um pouco um Madeira, acompanhou um queijo azul forte, aparentemente com grande sucesso.

Bom, e aí a pergunta óbvia: o que fazer diante de uma tábua com cinco, seis, dez tipos de queijos diferentes? A primeira coisa é se conformar e aceitar que, se for abrir uma garrafa só, você não poderá jamais harmonizar a bebida com todos os queijos. A solução é procurar um vinho que pelo menos combine com um ou dois e não brigue com os demais. Minha primeira opção iria para um branco bem encorpado. Minha segunda, que provavelmente seria a primeira se além de queijos houvesse também frios (embutidos, salames, presuntos etc.) à mesa, seria um tinto leve como um cru de Beaujolais. A última regra: separe o queijo azul para o final e se possível abra uma garrafa de vinho de sobremesa para acompanhá-lo -- depois dele, você não sentirá o gosto de mais nada. Ou desista de tudo isso e tome uma cervejinha bem gelada com um "rococó" de copa com gorgonzola... nenhuma bebida iria melhor, para horror dos sommeliers esnobes de plantão que desprezam o prazer das coisas simples.

Todo mundo ama queijo e todo mundo ama vinho, mas queijo e vinho nem sempre se amam da forma como as pessoas imaginam. Esse tem sido um casamento de fachada, bem menos harmônico do que as aparências sugerem.