segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Questão de personalidade


Há pouco, brinquei com a comparação entre vinhos e pessoas (ver post “Outono na taça”, abaixo). Já que embarquei nessa, vou completar o serviço. O estalo para escrever este texto veio quando estava no Esch Café, no bairro paulistano dos jardins, com minha esposa e um casal de amigos especiais. Foi uma noite boa, mas de vinhos apenas medianos. Na hora de fazer a reserva, negociamos um belo desconto na taxa de rolha do estabelecimento (ponto para o Esch) e assim decidimos levar as crianças de casa, o que sempre garante uma boa economia na conta.

Saquei da adega um Borgonha branco para iniciar os trabalhos: um Chablis premier cru de 2003, cujo produtor esqueci de anotar -- um erro imperdoável para quem escreve sobre o assunto, eu sei. Minha expectativa não era das mais altas porque a safra de 2003, quente demais em quase toda a França, roubou a acidez que é a espinha dorsal dos brancos, aquilo que deixa a boca salivando pelo próximo gole. O chablizinho estava mesmo meio chocho, longe do ideal de frescor e mineralidade dessa apelação. Meu amigo, por sua vez, levou um Mondavi Cabernet Sauvignon Reserva 2004. Era um vinho gostoso, mas tinha algo que me incomodava bastante. O que seria? De forma objetiva, não havia muito a criticar naquele Mondavi, um produto intermediário da famosa vinícola californiana, vendido nos Estados Unidos por algo ao redor de 30 dólares. Ao Chablis faltava acidez e vida, um defeito fácil de ser identificado. O Mondavi, entretanto, era tecnicamente bem-feito: boa fruta, bom corpo, madeira bem dosada, álcool equilibrado com os demais elementos. Nada errado. Ainda assim, soube de imediato que jamais ficaria satisfeito com aquela garrafa.

Demorei no máximo um par de goles para concluir o porquê. À minha frente estava um vinho sem personalidade. Faltava ali algo particular, especial, diferente – para o bem ou para o mal. Correto, sim, mas e daí? Nada surpreendia, nada intrigava naquele Mondavi. Há rótulos assim, às pencas, em todos os países produtores do mundo. São vinhos sem carisma, sem um traço peculiar. Como aquela pessoa sem graça que se veste adequadamente, comporta-se adequadamente, fala coisas adequadas – mas que faz tudo isso sem marcar quem está à volta. Ninguém realmente se encanta com um sujeito desses, ainda que não exista nada específico a criticar naquela pessoa. E talvez isso seja exatamente uma parte do problema.

Num vinho de 15, de 20 ou até 30 reais esse padrão mediano de qualidade é louvável. Significa que, mesmo gastando relativamente pouco, o consumidor terá um produto confiável em mãos. Mas em rótulos de preço elevado, espera-se um “algo a mais”. Aí ser tecnicamente bem-feito não é qualidade: é apenas obrigação.

Importante frisar que um vinho com personalidade não é sinônimo de um vinho que agrada a todos os gostos. Ao contrário. Personalidade é algo que às vezes incomoda. Pode ser que o santo não bata, como dizem. Um produto assim não é necessariamente melhor, mas dificilmente passa indiferente – e dificilmente outra garrafa será igual em suas qualidades e também em seus defeitos.

Essa capacidade de ser único, individual – mesmo quando vivemos na era dos produtos massificados, como retratou brilhantemente o artista americano Andy Warhol em várias telas, como a que reproduzo acima --, é um dos elementos que torna o vinho tão fascinante. Cada uva, cada terreno, cada enólogo, cada vinícola, cada safra, cada técnica de plantio e de vinificação influem no resultado final. Mais ainda: a cada ano que a garrafa descansa na adega, seu conteúdo evolui e transforma-se de uma maneira difícil de prever.

Por isso beber um vinho traz em si sempre um elemento de surpresa. Quem compra uma garrafa de seu uísque preferido sabe exatamente o que terá para tomar. Quem compra um refrigerante, também. São produtos padronizados, sempre idênticos. Com o vinho isso não acontece – ou não deveria acontecer. Quando encontro pela frente rótulos que seguem uma cartilha técnica que os torna todos muito parecidos, ainda que bem-feitos, torço o nariz. Posso não querer nenhuma surpresa quando abro minha Coca-cola, mas quero ter o prazer de descobrir coisas únicas a cada garrafa de vinho que desarolho.