quarta-feira, 16 de julho de 2008

A estrela de Portugal


Há dias que começam bem. O último 6 de junho foi um deles. Mal me vi de pé, fomos para a Quinta da Lagoa, um pequeno produtor do famoso Queijo da Serra da Estrela. Esse laticínio é, sem dúvida, um dos muitos tesouros gastronômicos de Portugal. Curiosamente, a produção não ocorre exatamente na serra que lhe dá nome, mas em uma área próxima, mais ao pé das montanhas.

Entrar na Quinta da Lagoa é um pouco uma viagem ao passado – seja pela rusticidade dos móveis e objetos, seja pela calma acolhedora e vontade de puxar prosa dos proprietários. Quem está à frente do negócio é Pedro, um senhor simples, direto, honesto e meio bruto – seu caráter parece combinar como todo o ambiente à volta --, mas ao mesmo tempo com um profundo conhecimento da arte de fazer laticínios.

A fabricação na quinta começou com a avó. À época, o queijo só saia bom mesmo nos meses em que a temperatura e umidade eram adequadas. Hoje, com alguns equipamentos, a produção atinge qualidade soberba em todas as estações. Mas engana-se quem pensa que Pedro é a favor de muita tecnologia. Ele reclama – e como – das exigências de assepsia que vigoram atualmente em Portugal. “É um exagero. Vão inviabilizar a fabricação de queijos bons”, diz. A queixa é explicada pela constatação de que todo o ambiente à volta contribui de alguma forma para a qualidade final do produto.

De fato, alguns queijos de qualidade excepcional não conseguem ser feitos em outros locais além de sua área de origem, por mais que todo o processo de fabricação seja rigorosamente o mesmo. Mais que isso: há relatos de fazendas de onde saiam laticínios incríveis e que "perderam a mão" depois de passar por uma modernização que impôs máquinas onde antes o trabalho provinha do suor humano e que instituíram um ambiente 100% esterilizado onde antes havia apenas uma área razoavelmente limpa (no máximo). Há um terroir do queijo? É bem possível. O queijo é resultado de uma ação química que envolve organismos vivos. É razoável supor que em certos locais esses organismos sejam diferentes – ou se comportem de forma distinta – do que em outros. Não sei se a explicação é essa mesma. Mas tente fazer um queijo como o da Quinta da Lagoa em outra região. Impossível.

O queijo da Serra da Estrela é feito de leite de ovelha – são necessários sete litros para uma unidade de meio quilo, em média – e temperado com sal e flor de cardo. Mais nada. O restante do milagre que origina essa iguaria fica por conta da destreza e do conhecimento de gente como Pedro. E talvez do tal terroir.

Naquela manhã experimentamos queijos de diversas idades – uns mais velhos e duros, outros derretendo como um requeijão. Todos deliciosos. E tomamos vinho tinto, embora a harmonização clássica – e divina – seja com Porto. Ali também descobri que o hábito de abrir o queijo da Serra da Estrela pelo topo e comer seu conteúdo cremoso com colher “é coisa da gente de Lisboa”. Na região mesmo, é na faca.

Tradição é tradição, e quem faz é que sabe. Mas nesse caso fico com Lisboa. Acho que a colher funciona muito bem. Para completar, vou ser do contra também na harmonização. Não há o que contestar em relação ao vinho do Porto, que casa de maneira genial com o laticínio. Mas, sem desprezar o Porto, gostaria de experimentar o Serra da Estrela com um bom branco fermentado em barrica, daqueles encorpados e, de preferência, já com alguns anos nas costas. Adoro harmonizar brancos com queijos – acho que um respeita mais o outro do que com tintos. Deve ficar muito bom com o Serra da Estrela.

Quem não quiser correr riscos, vá pela tradição. Em Portugal, essa escolha nunca é errada. E muitas vezes é a única: Pedro não admitiria servir um branco ali com seus queijos nem que eu implorasse.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Lei seca: governo erra na dose


A série sobre Portugal vai sofrer uma breve interrupção para um brevíssimo comentário sobre o tema do momento: a “lei seca” para os motoristas brasileiros. Claro, estou falando da lei 11.705, que altera o código de trânsito e proíbe o consumo de qualquer quantidade de bebida alcoólica para condutores (proíbe acima de 2 decigramas de álcool por litro de sangue, quer dizer, até bombom de licor extrapola o limite). Antes, era permitido no máximo 6 decigramas, o que equivale a mais ou menos dois copinhos de cerveja. Convenhamos, já era pouco. Agora, nem isso.

Com perdão do trocadilho, acho que o governo errou na dose. Ninguém com consciência da enorme quantidade de acidentes decorrentes da mistura de álcool + direção – muitos deles fatais, e não raro deixando vítimas inocentes – pode ser contra uma punição rigorosa para quem conduz um veículo em estado de embriaguez. Daí a proibir duas taças de vinho durante um jantar ou um chopinho com os amigos após o trabalho vai uma distância enorme.

Detalhe: um reles copo de cerveja demora seis horas para desaparecer do organismo. Enquanto isso, o bafômetro acusará álcool – e a pessoa pode ir em cana (com perdão do trocadilho outra vez). Fala sério: quem fica sem condições de guiar se tomou um ou dois copos de cerveja há quatro horas? Ninguém, é óbvio.

A lei é necessária, a punição rigorosa para os excessos é necessária -- mas é preciso estabelecer corretamente o que é excesso e, mais do que isso, o que é um excesso criminoso. Creio que o limite de álcool permitido no organismo deveria ser ampliado, ao menos nas cidades. Que seja rigoroso ao extremo nas estradas, estou de acordo. Só que do jeito que está, ninguém mais pode pegar o carro, ir ao restaurante com a esposa ou marido, tomar duas taças de vinho e voltar para casa. O que seria um programa civilizadíssimo virou crime digno de cadeia. Não faz sentido.

Em diversos países o limite permitido é mais elástico. Nos Estados Unidos, é de 8 dg de álcool por litro de sangue. Por aqui, ninguém duvida que esse exagero vai fomentar um mercado inédito de propinas. Ou isso, ou a lei não vai “pegar”, como acontece com freqüência neste país. O melhor texto que li sobre o assunto é de Josimar Melo, crítico gastronômico da Folha de S. Paulo (Lei seca é elitista, reacionária e semeia a corrupção). Vale a pena conferir.

sábado, 28 de junho de 2008

Na Bairrada, como os bairradinos


O simpático porquinho aí do lado é um legítimo leitão da Bairrada a caminho da mesa. Coisa seriíssima. Sempre um animal de seis a oito quilos aproximadamente, temperado pelo interior e preparado inteiro num espeto de madeira (antigamente) ou metal (mais comum hoje em dia). O bicho tem uma carne macia e pra lá de saborosa e sai do fogo recoberto por uma capa pururuca -- como se nota pela cor de bronze -- que levou os convidados da Dão Sul a um estado próximo da comoção. Tirei a foto na cozinha da vinícola Quinta do Encontro, talvez a mais moderna de Portugal. Foi lá mesmo que devoramos esse aí – e mais outro que bem deveria ser um irmão gêmeo, tão igualmente maravilhoso estava em tudo.

Já que a brincadeira é de gente grande, qual vinho escolher para o banquete? Havia opções de sobra. Mas nada escoltou o leitão melhor do que um espumante tinto – tinto mesmo, não rosé – feito da uva Baga, a casta típica da Bairrada. Surpreso? Também fiquei. Logo no começo da refeição, fomos avisados que essa é a combinação clássica da região. Sempre quebrei a cara em todas as vezes que apostei contra harmonizações que foram estabelecidas ao longo de décadas ou séculos e que fazem parte da cultura gastronômica de uma localidade. Mesmo assim, não pude deixar de duvidar novamente. Com vários tintos grandiosos à minha frente, seria um rústico espumante tinto que faria a melhor combinação? Foi.

Sozinho, aquela bebida não é das mais prazerosas. Um espumante pesado, com taninos perceptíveis e bastante ácido. Não serve de aperitivo. Não tem nem sombra do refinamento de um champanhe. Não é, por si, um grande vinho. Mas com o leitão, deu-se a mágica da harmonização perfeita. As bolhas generosas e a acidez viva quebravam a gordura do porco e lavavam a boca, aumentando o apetite e preparando para a próxima garfada e o próximo gole. Os taninos desapareciam com a comida e ajudavam a digeri-la. O leve frutado conferia um toque a mais na receita, sem nunca se sobrepor a ela.

Os vinhos brancos que tínhamos desapareciam com o leitão. Os tintos não iam mal – o melhor deles foi o Encontro 2005, um 100% Baga de alta classe, feito para a adega --, mas atrapalhavam um pouco na percepção da carne, que é delicada, apesar de gordurosa. Com o espumante tudo funcionou. Esse foi talvez o melhor exemplo da sabedoria regional em harmonizações que já pude experimentar. Quem for para lá, não pense duas vezes: na Bairrada, como os bairradinos.

E Portugal é bom mesmo nisso. O casamento de queijo da Serra da Estrela com vinho do Porto é outro tesouro enogastronômico que a Unesco deveria tombar como patrimônio da humanidade. Aí a lógica de harmonização é a mesma da nossa goiabada com queijo branco – o contraste de doce e salgado. Mas o Serra da Estrela merece um texto inteiro para si. Minha visita a um produtor artesanal desse laticínio -- que está, sem dúvida, entre os melhores do mundo -- será o tema do próximo post.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Portugal – I


Quem ainda não desistiu de dar uma passada pelo blog já percebeu que outros compromissos me impediram de atualizá-lo por um período muito longo. Pois foi justamente um desses compromissos – certamente o mais prazeroso dos últimos tempos - que agora me obriga a tomar vergonha na cara, espanar a poeira e resgatar o Carta de Vinhos do estado de hibernação em que se encontrava.

Como já está evidente que não terei tempo para escrever textos longos, tentarei uma mudança de estilo: atualizar o blog com maior freqüência, talvez duas ou três vezes por semana, porém me estendendo menos de cada vez. O que, afinal, é a linguagem-padrão dos blogueiros, que vivem na instantaneidade da internet.

Mas vamos ao que interessa. A convite da Dão Sul, um dos maiores grupos vinícolas lusitanos, e da importadora Expand, passei quatro dias em Portugal, cruzando o país para conhecer as principais regiões produtoras de vinho. Enfrentei uma agenda complicadíssima, que me obrigava a comer sem parar a maravilhosa culinária desse país. E dá-lhe leitão da Bairrada, queijo da Serra da Estrela, bacalhau preparado de várias formas, bochecha de porco, alheiras e embutidos típicos, polvo e outros frutos do mar, azeites extra-virgem, e, claro, sobremesas à base de amêndoas e ovos... um sacrifício atrás do outro. Pior: para cada prato sempre havia ao menos um – quando não vários -- rótulos para acompanhar. Um massacre.

Brincadeiras à parte, o fato é que considero Portugal um verdadeiro prodígio enogastronômico. Um país tão pequeno geograficamente e em tamanho da população conseguiu desenvolver uma culinária riquíssima – melhor dizendo, várias culinárias, pois cada recanto tem seus pratos únicos. Com os vinhos, ocorre o mesmo. Visitei a Estremadura, o Dão, a Bairrada, o Alentejo e o Douro (foto acima que tirei a partir da Quinta das Tecedeiras). Essas são as áreas mais conhecidas, mas Portugal tem 34 regiões vinícolas e mais de 500 uvas autóctones, variedades que só existem por lá. Um tesouro enológico de valor ascendente em um mundo cansado de tantos Cabernets e Chardonnays monotonamente parecidos.

A Dão Sul desenvolve um projeto que ao mesmo tempo moderniza e permite que essas peculiaridades de Portugal continuem vivas – e que sejam conhecidas fora das fronteiras lusitanas. O grupo, agressivo e moderno nos negócios, está comprando ou construindo vinícolas em todas as principais áreas produtoras. Em cada local, procura explorar as castas típicas e respeitar o estilo regional, porém adicionando um toque internacional que é marca do enólogo e sócio Carlos Lucas.

Desde o simples e saboroso Cortello, um vinho da Estremadura que é vendido no Brasil por R$ 16, até os top Four C, Encontro 1 e Pedro&Inês, todos acima de R$ 300 a garrafa, é possível notar a mão detalhista e a assinatura de Carlos Lucas. Seus rótulos são exportados para os quatro cantos do globo. Assim a Touriga Nacional, a Baga, a Bical e tantas outras uvas interessantes começam a freqüentar as mesas de outros países europeus, asiáticos, dos EUA e do Brasil. Portugal vai voltando a ser uma potência ultramarina – pelo menos na enogastronomia. Sorte de todo mundo e do mundo todo, que se deixa conquistar com prazer.

No próximo texto: o leitão da Bairrada, o queijo Serra da Estrela e os vinhos certos para acompanhar essas iguarias.

sábado, 3 de maio de 2008

Um que a mais


Entardecer do outono. Varanda de casa. O céu azul a perder de vista, uma brisa fresca e constante, o cheiro da terra e das plantas molhadas pela chuva que ontem castigou São Paulo – mas a quem hoje é preciso dar o devido crédito pelo ar mais limpo e pela terra úmida. Da cozinha vem o aroma de um ossobuco que comecei a preparar duas horas atrás. Sinto o alho, a pimenta, o bacon. Estou bem acompanhado por um Dolium Escolha 2005, um branco português da uva autóctone Antão Vaz – de onde eles tiram esses nomes? Branco encorpado, untuoso, com pegada, muito melhor em tardes frescas do que nos dias de calor excessivo de verão. No meio de tanta correria, um momento mais relaxado para apenas deixar-se estar e sentir.

Até que lá vou eu pegar o notebook e escrever mais um texto do blog.

Seguindo o que prometi no último post, o assunto da vez é a dificuldade de beber vinhos realmente bons. Não estou falando aqui dos rótulos caríssimos, dos grandes ícones de Bordeaux, Borgonha, Toscana ou Califórnia. Nada disso. Há ótimos produtos que podem satisfazer mesmo os mais enjoados e exigentes sem custar fortunas. Esse Dolium, que sai ali pelos R$ 80 na importadora Adega Alentejana, é prova disso. Eis um branco muito, muito bem feito, com acidez refrescante que chama para o próximo gole, com fruta e madeira convivendo em harmonia, encorpado e refinado. Com o tempo, os aromas cítricos mais evidentes do vinho cedem lugar a um cheiro que lembra curau e milho verde. Delícia. Já tomei Borgonhas quatro vezes mais caros que não tinham essa qualidade. O Dolium não é, com certeza, um dos grandes brancos do mundo. Com três anos, está na hora exata de ser bebido -- acho que não resistiria muito além dos cinco anos de vida. Mas é um vinho que tem um “que” a mais. Tudo funciona, tudo encaixa, e ainda há algo surpreendente, como esse bendido milho verde no nariz.

Ah, como é raro um vinho assim. E como dá satisfação quando, ao primeiro gole, percebe-se que aquela bebida proporcionará um prazer enorme até a última gota.

Recentemente, tomei um punhado de vinhos que considero que têm esse tal “que” a mais, como o Dolium. São rótulos que indico enfaticamente.

Pelo critério custo/benefício, no topo da minha lista está o Double T 2002 (Vinci), da vinícola Trefethen, um californiano fantástico, com força e classe andando de mãos dadas – juntar potência com elegância é, talvez, o critério básico que para mim faz um vinho ser excelente. Esse corte bordalês tem muita fruta vermelha e cassis, com toques de tabaco, chocolate e especiarias – está tudo ali, direitinho. Com o dólar em baixa, sai por pouco mais de R$ 80, o que o torna talvez a melhor oferta nessa faixa de preço em se tratando de vinhos californianos à venda no Brasil.

O espanhol Roda II 2002 (Expand) é uma mistura de Rioja tradicional com moderno. Muita madeira, mas muita fruta também, criando um conjunto harmonioso e irresistível. Impossível não gostar. Sai por R$ 288,00 – é caro, mas é um senhor vinho. O uruguaio Família Deicas Premier Cru Garage 2000 (Expand) é talvez o melhor tinto da América do Sul que já provei. Para mim, ganha de garrafas bem mais badaladas do Chile e da Argentina. Surpreendente do começo ao fim. Custa R$ 285,00, o que o torna igual ou mais barato do que Clos Apalta, Don Melchor, Cobos e outros medalhões que têm bem mais nome e notas de Wine Spectator – e menos qualidades como bebida.

Outros vinhos que tomei algumas vezes e que para mim também são memoráveis incluem o Tarapacá rótulo negro 2001, que parece um ótimo Cabernet Sauvignon californiano e pode ser encontrado por cerca de R$ 85; o Valduero Crianza 2003 (Grand Cru), belo exemplar da região de Ribera Del Duero, vendido em torno de R$ 100; o Quinta do Crasto Vinhas Velhas – as safras 2003, 2004 e 2005 são todas deslumbrantes. Sai por cerca de R$ 120 a garrafa, mas às cegas bate muito vinho de R$ 400 que tem por aí. Também digno de nota é o Charme, do Niepoort (Mistral), um Douro com elegância da Borgonha. Custa ao redor de R$ 300. E vale.

Esses são todos vinhos que tiveram a felicidade de acertar em cheio, pelo menos para o meu gosto, e por isso ficaram gravados na minha memória da melhor forma possível. Nenhum deles está entre os grandes ou os mais caros do mundo, mas estão entre os meus preferidos. Em contrapartida, poderia citar muitos que decepcionaram, mesmo de produtores de altíssimo nível. Certa vez tomei um Angélica Zapata Merlot 2000, da Catena, minha vinícola preferida da Argentina (seus rótulos são importados pela Mistral, mas esse Merlot não vem para o Brasil, foi comprado em Buenos Aires). Era simplesmente um veludo na boca, rendondo, elegante. Há pouco tempo, quando estive novamente em Buenos Aires, comprei outra garrafa, porém da safra 2002 – teoricamente um ano muito melhor em Mendoza. E eis que o vinho decepcionou: estava pesadão, enjoativo, com uma fruta exagerada e grosseira e madeira idem. Pois é, o Catena errou a mão. É raro com um produtor do calibre dele, mas às vezes acontece. A vinícola tinha uma safra melhor para trabalhar, mas aí extraiu fruta demais, usou madeira demais, sei lá... só sei que na safra pior o Angélica Zapata Merlot estava vários degraus acima de qualidade.

Ou posso citar exemplos de vinhos bem-feitos, mas que não têm o “que” a mais que os tornaria dignos de lembrança. O Nottage Hill Shiraz 2005 (Aurora), da Austrália, é uma boa pedida abaixo de R$ 50. Muito macio e prontíssimo para a taça, mas... falta algo. Você bebe, acha bom, mas passa batido. Não encanta, não surpreende, não tem classe. É bem feito, mas é padrão demais, sem nada especial.

Agora vou olhar meu ossobuco, que a noite promete. E escolher o vinho que deve acompanhá-lo, para não correr o risco de ficar sem assunto para o próximo post.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Sobre Buenos Aires e grandes vinhos


Voltei de uma recente viagem a Buenos Aires com um par de garrafas na mala e muitas considerações a fazer sobre a cultura de vinhos da Argentina. Ou seria o contrário? Bem, as considerações são as seguintes: os portenhos amam vinhos, mas ainda vivem uma fase de transição entre antigos hábitos e outros mais modernos; e a oferta de rótulos argentinos não pára de evoluir.

Explico. Assim que desembarquei em Buenos Aires, o taxista que me levou do aeroporto ao hotel estava com o rádio ligado. O que passava era um programa no qual o entrevistador conversava com algum enólogo para dar dicas simples: por que a temperatura correta de serviço é importante, por que a maioria dos vinhos não deve ser guardada por muito tempo, algumas regras básicas de harmonização com comidas etc. Tudo de um jeito direto e sem pretensão, sem pompa.

O entrevistado – infelizmente não me recordo quem era – jamais soava como um especialista falando coisas esotéricas que só poderiam ser compreendidas após anos de estudo. O que havia ali era um profissional do ramo que mostrava, baseado no bom senso, alguns cuidados para melhorar a experiência com a essa bebida que está tão entranhada na cultura da Argentina.

Mas se o vinho faz parte dos hábitos desse país, ainda assim há necessidade de um programa de rádio como esse? Se há. Bastaram quatro dias em Buenos Aires para que eu não tivesse dúvidas sobre isso. Em um restaurante tradicional (e delicioso) como o La Estancia, a carta de vinhos era apenas razoável e as taças ruins. Aceito ambas as coisas, pois se trata de um restaurante de classe média que permanece há décadas igual no serviço de vinhos -- o que talvez não seja louvável --, mas igual também na estupenda qualidade de suas carnes. O problema mais grave, mas também o mais fácil de arrumar, foi que a garrafa chegou à mesa quente – bem quente.

São coisas da velha Argentina, que durante décadas consumiu enorme quantidade de vinhos oxidados e de baixa qualidade. Hoje o nível médio subiu demais, porém o serviço e os hábitos ainda precisam acompanhar esse salto. Com iniciativas como o programa de rádio que escutei no táxi, acho que é apenas uma questão de tempo para isso acontecer. O próprio garçom do La Estancia, quando reclamei da garrafa quente, reconheceu prontamente o problema e trouxe um baldinho com gelo para fazer a correção. Em cinco minutos, o vinho chegou a alguma coisa próxima dos 18 graus. O velho garçom se desculpou e foi simpático toda a noite. Provavelmente se eu tivesse feito igual reclamação há, digamos, dez anos, teria escutado uma daquelas respostas atravessadas -- “Es asi que se bebe viño acá, hijo.”

A consideração dois é sobre a oferta de vinhos da Argentina. Há lojas e mais lojas espalhadas pela cidade, com uma variedade muito grande de rótulos. Contudo, 95% são de produtos argentinos mesmo. Isso acontece em quase qualquer país produtor. É meio limitante, mas não há remédio. Nem sempre compensa comprar vinhos em Buenos Aires, porque as garrafas que chegam dos hermanos estão entre as poucas que desembarcam no Brasil sem automaticamente triplicar seu preço. Pode acontecer até de determinado produto estar mais em conta por aqui. Vi isso com o excelente Catena Estiba Reservada, um vinhaço que a Mistral negocia por algo ao redor de R$ 150 e que em Buenos Aires muitas vezes sai pelo equivalente a R$ 200. Essa é uma exceção (não a única, contudo). Como a cotação está muito favorável para nós – o Real vale atualmente quase o dobro do Peso --, na maioria das vezes vale a pena trazer garrafas. Só que é preciso pesquisar. Quem sair enfiando na mala tudo o que vê pela frente sem saber quanto custa no Brasil arrisca-se a ficar no prejuízo.

Em relação à qualidade dos vinhos argentinos, já escrevi muito sobre isso recentemente. O nível subiu de maneira espetacular nos últimos dez anos e há um punhado de exemplares maravilhosos de várias uvas -- Malbec à frente, mas também Cabernet Sauvignon e cada vez mais Bonarda, Tempranillo, Merlot, Pintot Noir, Chardonnay, Torrontes e outras. Mas quem preza a elegância sobre a potência ainda precisa garimpar bem para ser feliz.

Como ressalva, vale dizer que produzir vinhos realmente grandiosos não é tarefa fácil nem na Argentina e nem em lugar algum, incluindo aí até a França. Quanto mais você conhece de um assunto, mais chato fica. Eu ainda não conheço tanto assim, mas já estou chatíssimo. Hoje em dia posso gostar de muitos vinhos, mas são poucos os que têm aquela coisa a mais que torna a experiência de bebê-lo realmente marcante, memorável. Na maioria das vezes, algum defeito logo salta à vista e incomoda um pouco.

Foi o que aconteceu com uma das lembrancinhas que trouxe de Buenos Aires, um Finca Los Nobles Cabernet Bouchet 1997 – isso mesmo – da vinícola Luigi Bosca. Pelo tratamento que recebeu, incluindo passagem de 24 meses em barris de carvalho de Troncais, esse pode ser considerado um superpremium de uma época em que quase não existiam vinhos superpremium na Argentina. Estava em forma após 11 anos, era aveludado e elegante, porém a madeira ofuscava completamente a fruta. Uma pena. Era quase como um prato feito com todo esmero e que tinha tudo para ser excelente, até que o chef erra a mão e coloca mais tempero do que o indicado.

Mas a dificuldade de fazer – e, mais ainda, de beber -- grandes vinhos fica como tema para o próximo post. Até lá.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

De volta, com a lente ainda mais distorcida


Quem é vivo, de vez em quando aparece... Após um longo intervalo, o Carta de Vinhos volta à ativa. Nesse hiato em que o blog ficou sem atualização, aconteceu uma coisa importante. Para colocar o assunto em dia e começar a tirar a ferrugem das mãos, vou tratar aqui apenas de uma notícia que diz respeito ao autor desta página virtual e que considero fundamental que todos saibam.


Seguinte: sou o responsável (um dos responsáveis, na verdade) por fazer o próximo catálogo da Expand, que deve chegar aos consumidores até o final de abril. Acho importante dizer isso às claras, para que todos conheçam essa minha nova ligação profissional com a importadora de Otávio Piva de Albuquerque.



Isso reduz minha independência para escrever este blog?


É claro que sim.


Vou procurar separar ao máximo as duas atividades. O blog é o blog, meu trabalho para a Expand é outra coisa. Prometo ser o mais imparcial possível. Se eu tomar um vinho da Expand e não gostar, vou dizer. Continuo achando que os preços cobrados por seus rótulos são muito altos, como infelizmente são altos os preços praticados por todos que comercializam vinhos do Brasil. Não vou deixar de falar de produtos de importadoras concorrentes. Não vou dizer que bebo Rio Sol todos os dias. Mas é claro que tendo um vínculo e desenvolvendo uma relação profissional com a equipe da Expand eu não tenho mais a mesma garantia de imparcialidade de antes. Admito isso.


Vou fazer o possível para erguer um muro entre as duas coisas. Adoro escrever este blog e não vou transformá-lo em um local de propaganda não-declarada. Mas que alguma coisa mudou, mudou. Foi decisão minha e assumo as conseqüências. Assim como é decisão minha tornar isso, vamos dizer, público.


Talvez a imparcialidade e a objetividade jornalística sejam quase uma utopia. Todos somos seres humanos com amizades, inimizades, interesses, mágoas, dívidas, laços pessoais, gostos e preferências. Todos temos nossas crenças e opiniões próprias, subjetivas. A lente através da qual cada um enxerga o mundo tem suas distorções particulares -- sempre tem. Isso vale para pessoas e vale para empresas de mídia também.


É razoável supor que eu não consiga ser 100% imparcial, mas posso tentar ser 100% honesto. Para isso, basta eu não omitir informações importantes. Declarando minhas relações profissionais que podem gerar conflito de interesse com o que escrevo aqui, o leitor tem os elementos necessários para fazer seu próprio julgamento e avaliar se o que declaro está enviesado ou não.

O contrário também vale: o catálogo não deve ser entendido como algo relacionado ao Carta de Vinhos. Acho que desenvolvemos muito conteúdo útil, pertinente e interessante nesse trabalho para a Expand. As informações são precisas e fiz muita pesquisa séria para escrever o que escrevi nas 130 páginas que em breve muitos de vocês terão em mãos. Creio que produzimos um material de referência. Estou orgulhoso desse produto (espero que o resultado final saia mesmo tão bom quanto parece que ficará). Mas é claro que também se trata de um catálogo de vendas -- uma peça de marketing, portanto -- com tudo que isso implica. É algo diferente do que faço aqui no blog.


Bem, por hoje foi isso. No próximo post vamos falar novamente do que interessa -- vinhos -- e perder menos tempo com o autor.

terça-feira, 11 de março de 2008

Para todos os gostos



Tenho sido relapso com o Carta de Vinhos, mas por ora não há remédio para isso. A carga de trabalho está grande e este espaço é um hobby, não uma obrigação. Quando não dá, não dá. A solução definitiva, no entanto, virá em breve. Meu blog já está sendo transformado em um site maior e mais completo, que será feito por mim e por outros dois blogueiros apaixonados por vinhos e gastronomia. É bem capaz de a nova página entrar no ar em abril. Aí, espero, teremos mais braços para abastecer os amigos enófilos com o conteúdo que eles merecem.


Feita a mea culpa, feita a promessa, vamos ao que interessa: os vinhos. Meu consolo é que, se não tenho conseguido escrever sobre eles o tanto que gostaria, pelo menos tenho bebido razoavelmente bem (ninguém é de ferro). Do que degustei nas últimas duas semanas, separei alguns rótulos que acho que merecem comentários. O painel abaixo traz produtos para todos os gostos e para (quase) todos os bolsos, embora, reconheço, a média de preços esteja meio alta. Vamos lá:


Basa Rueda 2006 – Um ótimo branco espanhol do grande enólogo Telmo Rodrigues elaborado com um corte de Verdejo 50%, Sauvignon Blanc 10% e Viura 40%. Custa cerca de R$ 38 na Mistral e vale cada centavo. Bem mais delicado que os Chardonnays cheios de madeira que andam por aí. Tomei no bistrô Allez! Allez!, no bairro da Vila Madalena, em São Paulo. Acompanhou divinamente um badejo com molho limão, porque este vinho tem aromas cítricos evidentes, lembra muito lima. O problema é que o Allez! Allez! cobrou R$ 80 pela garrafa. Depois, quando vi o preço na Mistral, bateu aquela sensação de dinheiro jogado fora... até quando vai durar essa mentalidade de margens de mais de 100% para vinhos em restaurante?


Montes Alpha Cabernet Sauvignon 2005 – Um clássico do Chile, vendido na Mistral a cerca de R$ 65. Toda a vez que tomo, lembro por que a Montes é a vinícola que é. Está aí uma excelente opção para o enófilo iniciante que quer começar a botar o pé no mundo dos vinhos sérios. Ou para os enófilos veteranos tomarem toda a vez que quiserem algo bom a um preço que não faz engolir em seco. Uma bela opção, sempre.


Châteauneuf-du-Pape Clos des Papes 2005 – Este é o arrasa-quarteirão que ficou em primeiro lugar na lista dos top 100 de 2007 da Wine Spectator. Significa que é o melhor vinho do mundo? Não, não é. Mas certamente está entre os grandes. A revista conferiu nota 98, que tendo a achar levemente exagerada – mas não muito. Este vinhaço segue um estilo bem internacional, mas tem um refinamento que denuncia sua origem francesa. Absolutamente sedutor, com taninos sedosos e um final longo. Maravilha. Para guardar na adega por muitos anos. Deve chegar a seu ápice daqui uma década, mas é daqueles vinhos que já nascem bons e não precisam envelhecer muito para dar um prazer imenso. Vendido na Premium, de Belo Horizonte, por alguma coisa ao redor de R$ 500 – preciso levantar o preço exato, esse aí é uma faixa de referência. Tomei no Varanda Grill, acompanhando uma seqüência de aves francesas preparadas com maestria pelo proprietário Sylvio Lazzarini. Brilhou com as aves, mas brilhará até mais com um Kobe bife da casa, que é uma manjar.


Corton les Renardes Grand Cru 1999 - Um Borgonha espetacular, que está no auge, pedindo, implorando, suplicando para ser bebido. Se você tem a sorte de contar uma belezinha dessas na adega, pode ir colocando a perdiz para marinar que não é necessário – e nem recomendável – esperar mais nada para abrir a garrafa. Os aromas complexos de terra molhada, folhas e flores secas, cedro e especiarias são o pano de fundo para a fruta madura que faz o ataque inicial no nariz. Enfim, está tudo lá. Felicidade garantida, daquele jeito que só a Borgonha garante. Vendido no Clube du taste Vin por alguma coisa entre R$ 200 e R$ 300.

Châteauneuf-du-Pape Lieux Telegraphe 2004 – Um bom Châteanueuf , que teve nota 94 da Wine Spectator. É menos exuberante e mais delicado do que a média dos vinhos dessa denominação, o que o torna ótima opção para acompanhar muitos pratos. É boa pedida, vinho sério, para conhecedores. Vendido na Expand por R$ 298.

Valduero Crianza 2003 – Vai ser difícil você gastar R$ 95 num vinho e fazer melhor negócio do que com este espanhol da região de Ribera del Duero. Não é um rótulo grandioso ou supercomplexo; tampouco conseguirá envelhecer décadas na adega. Mas é uma delícia, refinado, sensual, equilibrado, nem leve e nem ligeiro – tem tudo no lugar certo. Está simplesmente irresistível e deve permanecer assim por mais três ou quatro anos, pelo menos. É o tipo de vinho que agrada a todos, especialistas ou enófilos de primeira viagem. Da importadora Grand Cru.

Château Fontenil 2003 – Esse Bordeaux é feito pelas mãos talentosas de Michel Rolland, ele mesmo. Muita fruta e exuberância. Ainda novo, vai ganhar com um par de anos na adega e deve beber bem por pelo menos mais uma década. Foi tomado ao lado do Valduero acima descrito e, como ambos são da mesma safra, ficou bem visível o contraste de um produto que já está pronto e que não deve envelhecer demais para um bom rótulo de Bordeaux, que sempre pede um tempo maior de guarda. O Valduero já está no auge, mas o Fontenil claramente ainda precisa repousar um tanto para ficar no ponto. Cerca de R$ 180 na Grand Cru.

Porcupine Ridge Syrah 2005 – Ótima opção da África do Sul numa faixa não exorbitante – custa R$ 50 na Mistral. Muita madeira tostada no nariz, especiarias e um frutão só. Um vinho encorpado, para quem gosta de uma bebida que não passa desapercebida, mas que não descamba para a geléia. Vale a pena, mas para ser realmente um grande custo/benefício precisaria custar uns 15 reais a menos. Em todo o caso, a cada dia que passa, sou mais fã da África do Sul.

Santa Helena Seleccion del Directorio Chardonnay 2005 – Este me surpreendeu positivamente, porque é um produto vendido em grande quantidade no Brasil, disponível nas prateleiras de muitos supermercados. Tudo bem que é o top dessa linha da Santa Helena, mas achei que seria aquele padrão básico de Novo Mundo ruim que quer ser bom: madeira demais e elegância de menos. Bem, havia madeira em quantidade generosa, mas a fruta também acompanhava, a acidez equilibrava o conjunto e aparentemente a garrafa foi aberta na hora certa. E – não menos importante – com a comida certa: um prato de camarão na manteiga e alho. Ficou bom demais. Um vinho para os adeptos do estilo moderno. Para quem ainda está na fase de não gostar de brancos (é, tem isso) essa garrafa pode ser um bom começo para cair na real. Vendido por cerca de R$ 50 em qualquer esquina.

Steemberg Semillon 2006 – A uva Semillon é excelente alternativa para os amantes de Chardonnay que querem variar um pouco, pois é uma variedade branca que também aceita bem um tratamento com carvalho. É o caso deste exemplar, que consegue ter presença de boca para acompanhar muitos pratos, mas não é pesado. Tem a tal da “mineralidade”, leveza e um aroma exótico ao fundo que lembra derivados de petróleo, tipo querosene – isso mesmo – ou trufas e que é mais comum de se perceber em brancos de Riesling. Para mim, esse tipo de coisa é o cartão de visitas de um vinho de verdade, o que mostra que a coisa é séria e que você encontrará naquela garrafa algo que nenhum suco de frutas traz. Bela pedida a R$ 70 na Expand.

Coppola Blue Label Merlot 2003 – Californiano do famoso cineasta. Bebido às cegas, ninguém poderia duvidar que se trata de um Novo Mundo: é aquele doce só no nariz. Mas, para quem gosta do gênero, vale a pena. Um rótulo sedutor, macio, aveludado, como um bom Merlot deve ser. Bom vinho de meditação, para tomar sozinho pensando na vida. Sai ali pela faixa de R$ 150. Tomei no Rubaiyat, mas esqueci de anotar o importador.

Pol Roger Sir Winston Churchill 1996 – O melhor vinho que tomei este ano. Ok, estamos em março, mas... que vinhaço! Pode incluir 2007 aí, 2006, 2005... Champanhe com C maiúsculo. No Brasil, uma garrafinha dessas sai lá pelos R$ 700. Elegância, complexidade infinita, acidez certa. O que dizer? A leveza e graça de uma bailarina com a força de um peso-pesado, tudo junto na mesma taça. Se tivesse dinheiro para beber esse néctar todos os dias, beberia. Como, aliás, fazia o estadista inglês que era fã desse cuvée e que deu nome à sua versão atual. Churchill costumava apreciá-lo já no café da manhã. Gênio, gênio.

Bella Vista Brut Franciacorta – Este é o champanhe italiano, feito com as mesmas uvas empregadas em Champagne e com o mesmo método de produção de segunda fermentação nas próprias garrafas. Nada a ver com esse monte de Prosecco de décima categoria que infesta os supermercados (embora existam bons e até muito bons Prosecco). Vendido por pouco menos de R$ 150 na Expand, traz uma leveza, elegância e complexidade muito difíceis de serem encontradas em um espumante de fora da famosa região francesa. Vale conhecer.

Cloudy Bay 2005 – Este é o vinho que, com justiça, colocou os Sauvignon Blanc da Nova Zelândia na lista dos melhores brancos do mundo. Um maracujá incrível no nariz, com toques cítricos e florais. Muito perfumado, acidez generosa e bem encaixada. Belíssimo branco para acompanhar conchas em geral e frutos do mar leves. Vendido por cerca de R$ 100 pela LVMH.

Pronto! Beber foi fácil, mas custei a achar tempo para escrever. Semana que vem tem mais.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

O português do ano


Após um longo intervalo devido ao excesso de trabalho, estou de volta – e sem trazer um novo debate sobre aquele famoso crítico americano, conforme prometido. Desta vez quero falar de vinhos, mas por meio de um outro personagem: Carlos Lucas, que foi eleito enólogo do ano pela Revista de Vinhos de Portugal. Tive o prazer que conversar com Lucas recentemente. Ele também é responsável pelos rótulos da ViniBrasil, parceria da Expand com a Dão Sul no Vale do Rio São Francisco, no Nordeste brasileiro, uma região absolutamente inusitada para cultivar uvas viníferas.

Já provei, em ocasiões anteriores, diversos produtos que saíram das mãos de Lucas, que trabalha para a Dão Sul. Sobre um deles, o Quinta de Cabriz Escolha Virgílio Loureiro, comentei recentemente no post “Matizes” (ver abaixo). Já provei também o Pedro & Inês, este um Dão bem mais moderno, feito com um corte de Baga e Alfrocheiro, que é simplesmente delicioso; e o Four C, também moderno e muito sedutor. Infelizmente, ambos são bem caros: R$ 338 e R$ 368, respectivamente, na Expand.

De qualquer forma, Lucas é sem dúvida o enólogo da nova geração que melhor trabalha a região do Dão, que estava ficando para trás em relação ao Douro por ter sido lenta em se modernizar. É interessante a comparação que ele faz das três mais famosas áreas vinícolas portuguesas. “O Douro dá vinhos em um estilo muito internacional; o Alentejo, vinhos tipicamente portugueses; e o Dão, uma mistura dos dois”, diz. “Um ponto importante de destacar é que o Dão proporciona vinhos para a mesa de refeições. Na hora de escolher um rótulo português para acompanhar comida, nenhum técnico duvidaria em optar por um Dão.” Com o que, embora não seja técnico, concordo inteiramente. Boa parte da explicação para isso está na acidez mais acentuada, que ajuda muito na harmonização com comida. Lucas explica que o mosto das uvas no Dão geralmente apresenta pH de 3.4, enquanto no Douro está em 3.8 na mesma época.

Por razões óbvias, o vinho português sempre foi apreciado no Brasil. Mas no resto do mundo, em especial nos Estados Unidos, vinho português era apenas os fortificados do Porto. E só. Isso começou a mudar recentemente, de uns três ou quatro anos para cá, quando os produtos de mesa da terrinha entraram no radar dos críticos influentes – não vou citar o nome do dito cujo aqui outra vez, mas é ele mesmo e aquela outra revista de sempre. Só que os tais críticos concentraram seu trabalho no Douro, porque já conheciam o vinho do Porto que sai dali e porque os produtores locais estavam mais bem organizados para fazer um trabalho de relações públicas efetivo. Agora, parece que isso vai mudar. Lucas me contou que já estão marcadas para as próximas semanas visitas da equipe da Wine Spectator e de Mark Squires, que trabalha com Parker (pronto, falei), para conhecer os produtos do Dão. Pelo que conheço do gosto dessa turma, as notas talvez não sejam tão altas como as que o Douro tem conseguido. Mas acredito que serão bastante boas, com vários produtos acima de 90 pontos. Se for assim, será merecido.

Já no Vale do Rio São Francisco... bem, Lucas me falou com entusiasmo e brilho nos olhos do potencial do Nordeste brasileiro para vinhos. E definiu seu trabalho na ViniBrasil como “o projeto da minha vida”. Parece estranho, mas após uma hora de bate papo com ele, dá para entender. Lucas adora experimentar. Isso fica claro em duas de suas obras-primas: o Dourat, mistura de Touriga Nacional do Douro com Grenache do Priorato (Espanha), do qual são feitas apenas 1 200 garrafas por ano. Ou o Pião, um corte de Nebbiolo do Piemonte (Itália) com Touriga Nacional do Dão que proporciona apenas 1 000 garrafas anuais. Nunca provei nenhum dos dois, mas sei que ambos são caríssimos e badaladíssimos, verdadeiros vinhos “cult” disputados pelos aficionados de várias parte da Europa. Essa idéia de cortes de uvas originárias de países diferentes mostra como Lucas gosta de inovar e quebrar tradições. Acho isso sensacional. Quero que a boa tradição seja mantida em cada detalhe para que eu possa beber um vinho igual ao que se fazia há um século, igual ao que meus avós e bisavós tomaram. Mas quero também que, paralelamente, continue a ocorrer experimentações para que surjam coisas novas. Algumas serão ruins, mas outras podem ser maravilhosas.

O que está saindo do Vale do São Francisco, hoje, realmente não dá para chamar de maravilhoso. O Rio Sol é um vinho simples e o Paralelo 8, top do ViniBrasil, é apenas razoável para meu gosto. Os espumantes são notadamente inferiores aos da Serra Gaúcha. Mas aquele é um laboratório e tanto. Lucas diz que a uva Syrah adaptou-se muito bem e que, para sua surpresa, os mais recentes resultados com a Tempranillo estão causando entusiasmo. Lucas também detectou que o solo da região é livre da maioria das pragas que ataca as parreiras de uvas viníferas. Assim, planeja fazer um vinho com uvas de “pé franco”, como se chamam as plantas sem enxerto. Hoje quase todas as vinhas da Europa, Estados Unidos, Austrália etc. são de pés enxertados sob uma base (raiz) de parreira de uva de mesa (não uva vinífera), que é uma espécie resistente à filoxera, uma praga que arrasou os parreirais europeus no século XIX.

Se Lucas lograr produzir grandes vinhos no semi-árido nordestino, vai merecer o prêmio de melhor enólogo do mundo, não apenas de Portugal. Ele acha que pode. Tem méritos para merecer crédito.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

O advogado no banco dos réus


Vou mudar o disco. Prometo. Mas antes disso, tocarei uma vez mais o hit Robert Parker aqui no blog. Ele é tema recorrente para qualquer um que escreva regularmente sobre vinhos, de modo que no futuro inevitavelmente voltará à pauta. Contudo, garanto que darei longas férias a Mr. Parker -- até porque há muitas outras coisas interessantes que quero abordar neste espaço. Só gostaria de deixar clara minha opinião sobre ele, porque o que escrevi nos últimos textos parece ter dado a impressão em alguns leitores de que sou contra o famoso crítico americano. Então vamos esclarecer de uma vez por todas o que penso dele.

Primeiro: acho o Parker um grande crítico e considero sua contribuição e seu legado para essa indústria excepcional. Ele abriu caminho para que o trabalho de analisar vinhos seja visto com seriedade e executado seguindo uma metodologia mais consistente. Embora praticamente tudo o que ele faz já existisse antes, essas coisas eram restritas a um mundinho fechado. Com Parker, o especialista em vinhos passou a ser útil e acessível ao consumidor comum. Ele também desbancou famosas vinícolas européias que há muito sobreviviam da fama e da falta de informação, mas que na realidade estavam elaborando produtos medíocres. E acertou em cheio ao recusar publicidade e se negar a degustar qualquer garrafa que seja enviada como presente de vinícolas. Se eu já recebo alguns brindes por aqui, imagino que deve ter fila de caminhão maior do que nos portos brasileiros em frente a sua casa para entregar mimos dos produtores. Parker aceita e bebe, mas não dá nota. Só pontua o que ele mesmo comprou.

Minha principal ressalva a ele diz respeito a algumas avaliações com as quais, humildemente e cá de baixo, discordo. Já tomei produtos com altíssimas pontuações de Parker, sobretudo da Argentina, Austrália, Estados Unidos e Espanha que considerei vinhos exagerados, pesados, sem complexidade e indignos de tantos adjetivos elogiosos. Vinhos de certa forma monótonos, unidimensionais, nada intrigantes e cansativos de beber em grande quantidade. Que eu pense assim não quer dizer nada. É problema meu. Só que alguns grandes especialistas, como Steven Spurrier, da conceituada revista inglesa Decanter, pensam igual a mim. Ou eu igual a eles, para ser mais exato. Essas bolas fora do Parker, no entanto, são exceções. Adoro muitos rótulos desses quatro países e concordo com a maioria das avaliações de Parker ou de seu time de colaboradores para vinhos originários deles ou de quaisquer outros lugares. Mas que às vezes Parker decepciona, decepciona. Pelo menos para mim.

É meio duro de engolir que a Wine Advocate, sua publicação, confira maior nota para um Cobos, da Argentina, do que a um Château Cheval Blanc, de Bordeaux, ou mesmo Romanée-Conti, da Borgonha. O Cobos é bom, é melhor mesmo que muitos franceses consagrados, mas para mim não chega aos pés dos grandes da França – e para não me acusarem de “eurocêntrico”, nem ao mesmo nível dos top da Califórnia, que são espetaculares. Uma coisa é tirar a máscara de vinícolas famosas que só fazem porcaria, o que é louvável. Outra é sair distribuindo 98 pontos por aí quando os melhores vinhos da Europa só conseguem tal nota em safras excelentes. Tenha dó.

Se é assim, por que Parker não substitui o gigantesco estoque de sua adega particular, que ele mesmo admite que é dominada por franceses, por uns malbecões? Até me candidato a dar uma mão. Se quiser trocar comigo, a gente faz negócio. Meio contraditório isso, não? É algo como "você tome o que eu digo, mas eu tomo só francês mesmo porque não sou bobo."

Depois, acho que existem alguns problemas que derivam da enorme influência de Parker, mas que a rigor não são culpa dele. São muito mais culpa das vinícolas e dos importadores e distribuidores de vinhos. Creio que nos últimos dez ou 15 anos emergiu sim uma onda de tentar fazer vinhos com muita fruta madura, concentração e madeira, porque produtos com esse estilo tendem a ganhar notas maiores não só do Parker, como da Wine Spectator e outras fontes de referência. E aí pode acontecer de uma vinícola que fazia vinhos medíocres tomar consciência, investir em tecnologia e melhorar, o que é ótimo. Mas também acontece de produtores que seguiam um estilo próprio e interessante, que tinham uma assinatura, jogarem isso fora para seguir a moda. É culpa do Parker? Não exatamente. A vinícola fez o que quis.

Outra: essa tendência de os consumidores só comprarem vinho pelas notas. “Ah, comprei uma garrafa que tem 93 pontos do Parker”. Ok, a nota tem lá sua utilidade, é um recurso que acho válido, mas um vinho é muito mais do que dígitos. Ater-se aos pontos leva a uma simplificação meio empobrecedora de um produto que é culturalmente tão rico e que mesmo em termos de qualidade é sujeito a muitas variáveis. Se for para comer com um pato assado, por exemplo, prefiro um Borgonha – não importa se tem 87 RP, 85 RP ou sei lá quanto – do que um Syrah australiano de 93 pontos. De novo, não é culpa de Parker que as pessoas utilizem dessa forma o material que ele produz.

Encurtando: é possível olhar a taça meio cheia ou meio vazia. Parker trouxe muitas coisas positivas para o mundo do vinho, mas tem seus pecados e seus efeitos colaterais. Fazendo as contas, acho que o saldo dele está no azul, com folga. Desde o documentário Mondovino, nunca vi um crítico de qualquer assunto ser tão julgado como Parker tem sido. Esse historiador e advogado de Baltimore (essas são suas formações acadêmicas) não sai do banco dos réus. E tome pedrada. Uma ou outra ele talvez até mereça, mas tem havido uma malhação exagerada e injusta.

Parker é meu crítico preferido? Não. Prefiro a Jancis Robinson e Steven Spurrier. Prefiro Eric Asimov. Ou Hugh Johnson. Minha lista é grandinha. Mas nenhum deles tem a mesma importância ou a mesma influência, é preciso reconhecer. Que bom que existe um Parker. Gosto de seu trabalho. Sou a favor do Parker na maioria das vezes. Só não preciso concordar com tudo o que ele diz, nem achar que ele acerta sempre. Alguém acerta?

PS.: Encontrei no site do Parker a transcrição de uma entrevista que o próprio concedeu em 2005. Para a turma que adora o Parker e ao mesmo tempo critica quem é “eurocêntrico”, transcrevo essa resposta do crítico:

“Virtualmente, todo o vinho que bebo por prazer é francês e minha adega reflete isso. Bordeaux, Vale do Rhône, Borgonha (particularmente os brancos), Champagne e, claro, os brancos da Alsácia dominam minha coleção. Eu também tenho um fraco pelos grandes Barolos e Barbarescos do norte da Itália e no Novo Mundo aprecio a riqueza dos melhores vinhos da Califórnia. Mas em grande medida me considero um francófilo e meus gostos vão na direção da cozinha francesa e vinhos franceses.”

E assim ficamos combinados que o clube dos eurocêntricos, do qual este humilde blogueiro faz parte, tem o prazer de considerar Robert Parker como presidente honorário.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Matizes


Se há uma coisa que aprendi é que não existem verdades absolutas em se tratando de vinhos. Estava revendo meus textos antigos, quando ainda publicava este blog no portal da revista Exame, e me deparei com as entrevistas que fiz com Arthur Azevedo, presidente da Associação Brasileira de Sommeliers de São Paulo (ABS-SP), com o músico e crítico enogastronômico Ed Motta e com Jonathan Nossiter, autor do documentário Mondovino. Três conhecedores, três pontos de vista diferentes. Vou reproduzir aqui alguns trechos do que eles falaram.

Colocar as respostas deles lado a lado gera um resultado curioso: é como um dégradé. Arthur é mais pró-mercado, pró-tecnologia, pró-Parker. É a direita do vinho. Ed Motta já pende para o outro lado. Ele é da turma dos vinhos biodinâmicos. Tem um gosto que foge aos padrões que encontramos nas prateleiras dos supermercados e lojas especializadas. Admite que Parker entende de Bordeaux e Rhône, mas acha que para Borgonha o famoso crítico americano “é uma lástima”. Nossiter é a extrema esquerda – quase xiita. Ataca a globalização do vinho, que torna produtos de países e regiões diferentes muito parecidos. Para ele, Robert Parker e o famoso enólogo-consultor Michel Rolland são os responsáveis por essa padronização nefasta que sufoca os pequenos produtores artesanais.

O diabo é que, ao reler essas opiniões de matizes tão díspares, não consigo deixar de pensar que os três têm lá seu quinhão de razão, por mais paradoxal que isso seja. Sei lá se existe alguém mais certo do que o outro – este blog é naturalmente um espaço de debates e todos podem deixar seus comentários para enriquecer a discussão.

Resolvi resgatar essas entrevistas quando, na última sexta-feira, tomei dois vinhos portugueses com características quase opostas, mas ainda assim ambos excelentes. O Quinta do Vale Dona Maria 2000, um Douro de estilo moderno, com muita fruta, carregado na madeira e 14,5% de álcool. E outro portuga da mesma safra, o Quinta de Cabriz Escolha Virgílio Loureiro, um Dão tradicional, com 13% de álcool, mais acidez, menos fruta e carvalho discreto. E, bem, lá vou eu ficar em cima do muro outra vez, mas preciso dizer que adorei os dois. O Dão ainda era uma criança, atestando que vinhos em estilo tradicional envelhecem mais e freqüentemente melhor. Arrisco dizer que este Virgílio Loureiro chega até 2015 em boa forma e talvez vá ainda mais longe. O Douro estava no auge, prontíssimo para a taça, exibindo uma cor atijolada turva, aromas evoluídos com um toque doce no nariz e muito macio na boca. Se tivesse uma garrafa dessas em casa, não esperaria muito mais para abri-la.

Fico contente de conseguir apreciar os dois. Num dia frio ou com uma comida forte, o Douro iria melhor. Com pratos mais leves, como um pato ou um coelho, o Dão seria perfeito. Da mesma forma, acho ótimo que existam três figuras como o Arthur, o Ed Motta e o Nossiter, com opiniões muitas vezes divergentes – e mesmo assim um ponto em comum: a paixão pelos vinhos. E viva a diversidade. Deixo a palavra com eles.

ARTHUR AZEVEDO

O senhor concorda com as críticas que são feitas ao Robert Parker, de que ele gosta de vinhos concentrados demais, com muita madeira e nenhuma elegância?

Arthur Azevedo: De forma nenhuma. Para desmentir estas críticas basta ler as avaliações que Parker faz dos vinhos de Bordeaux e o seu apreço por vinhos elegantes e complexos. Acredito que criticar o Parker virou moda, mas a maioria das pessoas que adota esta postura não conhece nada de vinho e busca apenas seus 15 minutos de fama. Também o criticam produtores preguiçosos, que nada fazem para melhorar seu produto. Robert Parker é de longe o mais importante crítico de vinho do mundo e o primeiro a mostrar as fragilidades de produtores de muito nome e pouca qualidade. Parker, como qualquer ser humano, pode ter suas preferências pessoais, mas a seriedade de suas críticas e a consistência de suas análises são uma referência segura para os consumidores.

O que acha da crítica de que a tecnologia é responsável por padronizar os vinhos no mundo todo, o que acaba com a diversidade natural de cada região?

Arthur Azevedo: Também discordo frontalmente de quem acha que tecnologia faz mal. De forma geral, a tecnologia ajudou a melhorar significativamente a imensa maioria dos vinhos do mundo. Geralmente, só quem não dispõe de recursos financeiros para comprar tecnologia para sua vinícola é que se coloca contra seu uso. Caso emblemático é o de pequenos produtores que, sem dinheiro para comprar as dispendiosas barricas de carvalho, atacam de forma absurda quem as usa, apoiando-se no argumento surrealista de que as barricas "descaracterizariam o vinho". Pior é que alguns luminares concordam com esta descabida argumentação... Quando o produtor é competente, o uso da tecnologia só reforça o caráter dos vinhos, que podem desta forma expressar de forma cristalina as características e a tipicidade de cada região.

O que o senhor acha de vinhos artesanais?

Arthur Azevedo: Depende do produtor. A imensa maioria é de qualidade duvidosa e só encontra respaldo nos xiitas de plantão. Mas nos dias atuais cada vez menos estes vinhos terão espaço nas adegas dos consumidores mais exigentes e bem informados.

O que o senhor acha da vinicultura orgância? E da biodinâmica?

Arthur Azevedo: É uma questão de fé. Acredito que cuidados viticulturais adequados e uso mínimo de química são extremamente benéficos para a saúde das uvas. Sabe-se que vinhos obtidos de uvas sadias e bem cuidadas têm maior probabilidade de ter boa qualidade. Mas não sou radical nesta questão. Já tive o desprazer de degustar vinhos orgânicos/ biodinâmicos de péssima qualidade. O que me desagrada é ver que muitos produtores usam a biodinâmica como recurso de marketing, sem se preocupar com a qualidade final dos vinhos.

ED MOTTA

É sabido que sua preferência recai sobre a Borgonha, sobre vinhos artesanais e biodinâmicos (vinhos biodinâmicos são aqueles produzidos de forma 100% natural, sem uso de agrotóxicos ou fertilizantes e respeitando os ciclos da natureza). Qual o motivo dessa predileção?

Ed Motta: A Borgonha é o que mais me emociona, tanto branco quanto tinto. São os vinhos mais complexos, ricos de fruta e aromas, que conheço. Minha preferência recai única e exclusivamente sobre a França em geral. Tanto que a única revista de vinho que assino é a Revue Du Vin De France, que fala dos vinhos que realmente me interessam. Francofilia prazeirosamente assumida! Mesmo que eu esteja num país que produz vinho, se tiver um francês top na carta, com certeza vou beber o francês. Ano passado em Milão aconteceu um fato muito engraçado no restaurante Da Berti. Eu estava fazendo uma temporada no club de jazz Blue Note. Quando entrei no restaurante para almoçar, um garçom que ia ao show e me conhecia acabou me apresentando ao dono, que soube do meu interesse por vinhos me convidou para conhecer a adega da família. Era uma coleção de vinhos italianos impressionante. Eu tinha escolhido duas garrafas do Gaja antigas da época do pai, quando o rótulo era amarelo e os norte-americanos ainda não bebiam Gaja. Mas na saída da adega vi uma parede de Clos De Tart do Mommessin todas da década de 60... Não pensei nem um segundo e disse: "o senhor por favor me perdoe mas eu queria esses Borgonhas". Ele me deu umas dez garrafas e não cobrou dizendo que não queria aqueles malditos vinhos! A gastronomia italiana é minha favorita. O paraíso para mim é vinho francês e comida italiana, mas finalizando com queijos franceses.

Você critica muito os vinhos superfrutados e cheios de carvalho -- que você define como "vinhos disneilândia" (adoro isso). Como surgiu essa definição?

Ed Motta: É uma gozação com o gosto gastronômico norte-americano médio, um gosto infantil, de bala, doce, sorvete. Mas isso é febre no mundo todo, na Europa inclusive. Tem produtor da Borgonha mudando o rótulo e o vinho para se parecer com os californianos, australianos etc. Efeitos da Bobalização.

Não há vinhos no estilo muito frutado e com muita madeira que seja bom?

Ed Motta: Se eu estiver num churrasco (como convidado, é claro) e aparecer uma coisa dessas eu acho até suportável. Mas não compro isso com meu dinheiro e não abro com minhas mãos. Agora frutado, eu vou para o vale do Loire, isso é frutado de verdade pra mim. E a fruta da Borgonha ? E da Alsácia ? Essa é fruta que eu gosto.

Qual sua opinião sobre os vinhos argentinos? E chilenos?

Ed Motta: Tem coisa boa. Na Argentina meus favoritos são os malbec top do Achaval Ferrer. Esse tem o frutão, mas é diferente, grande vinho. Do Chile tem o Antyal, Domus Aurea, Pargua. Mas no momento em que vou abrir um vinho para o meu prazer mesmo é sempre França... Borgonha, Loire, Rhône, Jura, Languedoc, Provence, Bordeaux.

Compare Borgonha x Bordeaux

Ed Motta: Os Bordeaux são muito parecidos -- eu gosto, mas não são meus favoritos. Se vou comer um cordeiro, um Bordeaux é das melhores opções, mas talvez prefira um Hermitage ou Cote Rotie. Em Bordeaux os vinhos de Pomerol, St.Emilion e Graves são meus favoritos. Gosto dos Bordeaux que tem alma borguinhone, Trotanoy, Haut-Brion etc. Os Borgonhas têm maior sutileza, nuances, por isso gosto bem mais. Bordeaux eu bebo com prazer, mas nunca compro. Depois da Borgonha na minha preferência vem Loire, Rhône, Alsácia e só depois entra Bordeaux. Mas ainda assim prefiro Bordeaux a qualquer vinho de fora da França.

Qual sua opinião sobre o crítico Robert Parker?

Ed Motta: Eu tenho todos os livros do Robert Parker, as descrições são ótimas principalmente em Bordeaux e Rhône, a praia dele. Na Borgonha é uma lástima, ele não é um grande fã e inclusive tem problemas pessoais na região. Os leitores e repetidores de notas são mais chatos do que o Robert Parker em si. A tabuada me irrita, aquele parêntese do lado dos vinhos com RP ou WS... uma bobagem.

JONATHAN NOSSITER

Michel Rolland é o culpado por essa onda de vinhos padronizados?

Nossiter: Michel Rolland é claramente o líder desse movimento. Pegue um desses vinhos superencorpados de Rolland e me diga: é chileno, argentino, australiano, de que país é? Ninguém consegue distinguir. É tudo igual. Entre os produtores artesanais, há vinhos particulares, que você pode gostar ou não gostar, mas que não têm a pretensão de trazer prazer para todos. São vinhos com defeitos -- e eles não escondem isso. Os vinhos de Rolland tentam sempre esconder defeitos, alcançar um alto nível de perfeição técnica e previsibilidade de produto. Eles estão na lógica de mercado. É outra ambição. O Rolland e seus amigos me acusaram de fazer algo falso e manipulador em Mondovino. Se fosse isso mesmo, eu teria sofrido um processo. Mas nenhum deles me processou -- muitos me ameaçaram, mas ninguém fez. Porque as palavras são deles no filme. O tempo todo [em que a filmagem acompanhou o trabalho de Rolland] o Rolland quis andar no carro dele e fazia visitas de dez minutos a cada vinícola que é sua cliente. Não o vi ficar um segundo no vinhedo. É chocante a arrogância das pessoas que têm muito poder nesse mundo, que estão acostumadas ser tratadas como reis, e como eles estão deformando o conhecimento do vinho do mundo inteiro.

O senhor acha que nenhum vinho feito por Rolland é bom?

Nossiter: O Rolland é um enólogo com conhecimento técnico profundo. É preciso reconhecer isso. Todos os seus vinhos têm nível técnico alto. São vinhos bem feitos, como os filme de Hollywood repletos de efeitos especiais são bem feitos. Nunca vou dizer que você não pode gostar desse tipo de vinho, pelo amor de Deus. Sou pela pluralidade de gostos, de sabores. Mas que alma há por trás? Que intenção humana e cultural está por trás? Porque vinho é sim um produto no mercado, mas também é uma expressão humana e cultural. Então qual a intenção atrás de um filme de Hollywood? Os filmes de Hollywood estão invadindo as telas e a conseqüência disso é que uma produção local, sem os efeitos especiais dos Estados Unidos, não encontra mais espaço no mercado. Porque esse gosto americano está dominando, ficando hegemônico. Com o vinho acontece a mesma coisa, e a cumplicidade de críticos poderosos ajuda. Esse sabor está sendo imitado no mundo inteiro. Esse é um perigo verdadeiro. O que está acontecendo no Brasil, com esses pequenos produtores artesanais, é um milagre. No Uruguai, a situação foi muito promissora há três anos, mas hoje é uma catástrofe. Eles escolheram imitar os padrões argentinos. Alguns vinhos da uva Tannat que antes eram interessante hoje em dia são vinhos argentinos menos bem feitos. Há exceções, mas poucas.

Mas porque é preciso tomar partido? Não é possível gostar dos dois estilos? Os vinhos à Rolland não podem viver ao lado dos artesanais?

Nossiter: A princípio, claro. Mas o problema é que há uma tendência do mundo todo de homogeneização. As grandes vinícolas que seguem um estilo padronizado vão dominar o mercado e impedir que o consumidor brasileiro conheça coisas diferentes. Para chegar num vinho como o de Álvaro Escher as pessoas precisarão de muito esforço. Veja a arrogância de Michell Rolland quando diz que no Brasil só há dois ou três vinhos bons. Alguém que não fala português, não passa tempo aqui, não conhece os produtores locais... isso me deixa bastante zangado.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Cinzas


Ufa! Chegou a quarta-feira de cinzas. A denominação desse dia faz mais sentido do que nunca após um carnaval na Bahia, de modo que este será um texto curto apenas para dizer que estou (meio) vivo -- e para compartilhar algumas breves idéias a respeito de vinhos, claro. Estive em Salvador a convite da fabricante de charutos Menendez Amerino, que detém as marcas Alonso Menendez e Dona Flor. A empresa organizou um belíssimo camarote no circuito do Campo Grande, o mais antigo da cidade. O espaço estava muito bem servido de comidas e bebidas, mas passei ao largo dos vinhos. O máximo que fiz foi tomar meia taça do sempre honesto (e nunca empolgante) espumante básico da Salton. E só.

Para além das discussões inflamadas – talvez inflamadas demais em alguns casos – que os últimos posts levantaram sobre estilo Novo Mundo x Velho Mundo, isso me faz pensar que o mais importante no momento de escolher um vinho é... o momento, justamente. Ok, todo mundo que lê este blog já cansou de saber que acho os rótulos feitos em estilo tradicional mais fáceis de harmonizar com comida. Mas até este “eurocêntrico” aqui admite que há casos em que existem opções melhores da Argentina, Chile ou Austrália do que da velha Europa. Seja por custo/benefício, seja por ser um dia frio que pede um vinhão encorpado, seja porque estes países do Novo Mundo têm mesmo ofertas consistente de produtos maravilhosos que merecem ser conhecidos.

Sim, e também há casos em que outras bebidas podem descer melhor do que vinho. Num barzinho no Rio de Janeiro, perto do mar, de chinelo, sal no corpo e um sol de 40 graus na cabeça... alguém consegue pensar em algo melhor do que um chope bem tirado? Com uma feijoada entre amigos, num lugar simples e despojado, fica difícil resistir a uma caipirinha. E ali, no carnaval de Salvador, com aquele calor e o clima informal – informal é eufemismo --, com a oferta de acarajé e outras comidas típicas, simplesmente não achei lugar para a minha bebida preferida. Fui de cerveja mesmo. Não me arrependi.

Há um outro capítulo nessa história que é a harmonização de charutos com bebidas. Obviamente o camarote da Menendez tinha diversas opções à disposição. É realmente difícil combinar "puros" com vinhos. Apenas os fortificados, como Porto, resistem. Mesmo assim, se eu tiver um grande Porto envelhecido em casa, jamais tomaria junto com charuto. No camarote havia uísque 12 anos e, melhor ainda, algumas cachaças com passagem em madeira. No futuro pretendo fazer um texto mais detalhado sobre compatibilização de charutos com bebidas. Por ora, vou curtir minha quarta-feira de cinzas. Mais uma vez, sem vinho. Hoje nada vai harmonizar melhor do que um belo copo de água mineral.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Gosto não se discute?


Por trás dos dois últimos textos que publiquei, há uma mesma questão fundamental: existe algo como “gosto certo” e “gosto errado” para vinho? Sim, porque uns acham que determinado rótulo merece 98 pontos, enquanto outros consideram que uma nota 90 já estaria de ótimo tamanho; uns elegem o Chile como melhor país produtor da América do Sul, outros defendem a Argentina e um terceiro grupo sustenta que o título deveria ir para o Uruguai.

Em contraposição às opiniões mais contundentes, existe aquele velho papo de que gosto não se discute. Por esse raciocínio, é impossível haver certo ou errado em toda a sorte de preferências -- seja por time de futebol, poesia, filmes, mulheres, quadros, comidas, bebidas ou qualquer outra coisa. Se prefiro guaraná a tubaína, quem pode dizer que estou errado? Se acho um Malbec argentino de 15 reais melhor que um Romanée-Conti 1985, qual a equação matemática, qual a legislação, qual a escritura sagrada ou a tábua dos mandamentos que diz que estou cometendo um equívoco imperdoável?

Bem, bem, bem... vamos analisar um pouco esse tema. A coisa não é tão simples. Acho que gosto é para ser discutido, sim – mais do que isso, é para ser desenvolvido, treinado, aperfeiçoado. Aprendido, enfim. Não se trata de uma posição pedante do “especialista” dizer ao “leigo” o que é bom e o que é ruim. Trata-se de formar um senso crítico e desenvolver uma sensibilidade apurada por prestar muita atenção em algo. E isso vale para tudo, não apenas vinhos. Muitas coisas boas da vida precisam ser aprendidas para serem usufruídas em sua plenitude.

Nenhuma criança entende como um quadro de Picasso pode ser revolucionário ou como um texto de Proust é profundo. É necessário ter certa bagagem para isso. Mesmo exemplos mais prosaicos são válidos. Alguém que segue assiduamente um esporte qualquer, como futebol ou tênis, por exemplo, será capaz de se deliciar com um lance genial, pois saberá que presenciou algo raro, executado com maestria. Aos olhos de uma pessoa que jamais acompanhou com atenção essa atividade, a mesma jogada terá muito menos graça, porque faltará base de comparação.

Moral da história: não é que exista propriamente gosto certo e gosto errado para vinho, mas existem, sim, níveis de desenvolvimento para apreciar essa bebida. Quem toma duas ou três garrafas por ano sem prestar muita atenção, por vezes junto com uma comida que nem combina direito, certamente não terá uma compreensão tão profunda como quem tem no vinho um hobby e está a todo momento lendo, discutindo e experimentando coisas novas.

Tudo muito bem, tudo muito bom, mas o que explica então a disparidade de opiniões entre críticos e especialistas, todos com um currículo que daria para encher um açude? Aí entra uma questão de “escola” e do peso que cada qual confere aos diferentes aspectos que compõem a avaliação de um vinho. Há aqueles que preferem produtos mais encorpados e exuberantes, que seguem um estilo moderno, como Robert Parker (foto acima). Outros, como nosso Ed Motta, são fãs de uma linha tradicional e sutil. O que eles têm em comum, contudo, é que sabem o que fazem -- cada um na sua praia, mas sabem. Se você gosta de vinhos concentrados, com um toque de madeira evidente, fruta explosiva e taninos macios, pode seguir as notas do Parker que a felicidade é quase garantida, salvo um ou outro escorregão até perdoável para quem experimenta uma taça atrás da outra como se fosse uma linha de montagem. Mas se prefere bebidas mais elegantes, leves e com mais acidez, vai quebrar a cara com muito “RP 98” por aí.

Por isso o importante é ir formando seu paladar aos poucos, sem pressa e sem medo de voltar atrás e reconsiderar antigas opiniões. Experimente sempre, prove produtos diferentes, e preste atenção aos defeitos e qualidades de cada um. É muito normal o sujeito começar a gostar de vinhos pelos rótulos mais “porrada”, que são mesmo sedutores e marcantes, e depois mudar para os mais elegantes, sutis, que respeitam mais a comida e são menos óbvios. Comigo foi assim. E ainda acho que tenho muito, mas muito a evoluir.

Se você aprecia vinhos, discuta seus gostos, sim. Não para ter razão ou deixar de ter, muito menos para impor seu ponto de vista, mas simplesmente pelo prazer de debater um assunto tão interessante – e para continuar aprendendo sempre.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Argentina vs Chile: quem é melhor?

O último texto (“Soy Loco por ti, Argentina” – ver logo abaixo) provocou certa polêmica, e é sempre bom quando os leitores se manifestam mais ativamente. Mesmo se não concordo com os argumentos de um ou outro, ainda assim fico feliz por criar algum burburinho. A possibilidade de interação é o grande barato dos blogs e o que torna esse novo tipo de veículo tão envolvente. Pelo nível dos comentários percebo que tem gente que entende do assunto lendo o Carta de Vinhos. Muitas vezes as informações e experiência que os leitores compartilham é o melhor conteúdo disponível nesta página virtual, muito mais enriquecedor do que eu sozinho poderia oferecer. Ainda bem.

Uma coisa puxa a outra e chego ao post atual, que também é um tema controverso. Então lá vai: que país faz os melhores vinhos da América do Sul atualmente? Não sou dono da verdade, por isso fiquem todos à vontade para opinar. Mas também não vou ficar em cima do muro.

Comecemos pelo óbvio: o Brasil não é. A produção nacional melhorou muito, mas ainda estamos nitidamente engatinhando. O único tipo de vinho em que o Brasil está à frente do resto do continente são os espumantes.

Depois, o Uruguai. Gosto de diversos rótulos uruguaios. O Prelúdio, por exemplo, é ótimo, muito elegante e parece evoluir bem na adega. Contudo, embora tenha simpatia pela produção local, não acho que o troféu deveria ir para o Uruguai. A quantidade de vinhos realmente bons é limitada e a qualidade média ainda poderia melhorar. A uva-símbolo do país, a Tannat, é bem interessante, só que sozinha não faz verão. É preciso desenvolver outras variedades e melhorar os cortes. Recentemente tomei um Pisano Tannat RPF 2002 que confirmou uma impressão que muitas vezes tenho de produtos feitos dessa casta. Mesmo sendo um rótulo relativamente simples, apresentava ótima estrutura e agradeceu os cinco anos de envelhecimento. No entanto, a fruta ficou num tom meio baixo, um pouco desvanecida, tanto que a madeira dominava demais o nariz e a boca.

Por eliminação, chegamos a Chile e Argentina, sem dúvida as grandes potências vinícolas da América do Sul. Seus melhores rótulos são reconhecidos e admirados internacionalmente, enquanto os produtos básicos e intermediários podem ser excelentes custo/benefício. Esses países divididos pela cordilheira dos Andes nutrem uma rivalidade histórica, que agora se repete nos vinhos com toda a força.

E aí, quem é melhor? Vamos por partes.

O Chile começou a revolução da qualidade um pouco antes, lá pelo final da década de 80. A Argentina, quase dez anos depois. Em compensação, o ritmo portenho andou mais ligeiro. É impressionante o salto que Mendoza deu, digamos, entre o que se fazia em 1998 e o que se faz hoje. Foi da zurrapa para o vinho.

Ambos países adotaram uvas francesas que até então ocupavam um papel secundário e elevaram-nas a uma posição de destaque. O Chile foi de Carmenere, uma variedade de Bordeaux que estava quase extinta e foi redescoberta em alguns vinhedos chilenos misturada à Merlot; a Argentina elegeu a Malbec, também francesa e igualmente pouco prestigiada em sua terra natal. Acho que as duas variedades originam, sozinhas ou em cortes, vinhos muito bons e cada qual com um caráter bem particular. Mas, na minha opinião, aqui quem marca ponto são os argentinos. Hoje os vinhos de Malbec são, na média, melhores que os de Carmenere em todos os níveis, desde os produtos básicos até os top. Repito: na média. Há excelentes exemplares de Carmenere e há Malbecs péssimos, monótonos e concentrados demais. Só que temos mais coisas razoáveis de Malbec e, sobretudo, os rótulos superpremium dessa variedade batem a maioria dos superpremium de Carmenere (até porque há poucos; a Carmenere é mais usada em blends mesmo). No Chile, a uva tinta de melhor qualidade ainda é a universal Cabernet Sauvignon.

Em diversidade climática, o Chile leva certa vantagem. O país é aquela tripa estreitinha, mas é comprido à beça (são 4 630 quilômetros de norte a sul e apenas 430 quilômetro entre o ponto mais largo de leste a oeste do país). Isso faz com que passe por muitas latitudes e, conseqüentemente, apresente climas muito diferentes. Há terrenos adequados para praticamente qualquer tipo de uva. De fato, Cabernet Sauvignon, Syrah, Carmenere, Merlot, Pinot Noir, Cariñena, Chardonnay, Riesling e Sauvignon Blanc estão todas gerando rótulos de alto nível no Chile. Até a Malbec vai bem: o Viu Manent Viu 1 é um produto excelente feito com essa casta.

Já a Argentina usa e abusa da plantação em montanhas para que o frio da altitude compense o calor excessivo da semi-desértica Mendoza. É um recurso não só válido como louvável e que está dando resultados. Ainda assim, a maioria das garrafas argentinas é marcada por uma potência e concentração típicas de regiões muito ensolaradas e quentes.

Claro, tudo isso é teoria. O que vale mesmo é na taça, certo? E na taça o Chile ganha por um motivo principal: os bons vinhos chilenos são mais elegantes, mais refinados. Os argentinos podem ser excelentes, mas têm a mão pesada. Isso não é um fato indiscutível. É apenas minha opinião pessoal.

Diversos especialistas respeitados dizem que a Argentina logo, logo, vai superar o Chile – na verdade, muitos acham que já superou. A Argentina tem maiores extensões de áreas cultiváveis, mais recursos financeiros, atraiu investidores e enólogos internacionais de peso e deu um salto inacreditável de qualidade num período curtíssimo. Pode ser. Mas estou falando de hoje. E hoje eu prefiro os vinhos chilenos.

De novo – já que o assunto é polêmico, convém deixar minhas opiniões bem claras – isso é uma média. Muitos rótulos argentinos são absolutamente fantásticos e alguns são inclusive elegantes. Achaval-Ferrer, Cobos, Nicolas Catena Zapata, Cheval des Andes e Iscay, entre alguns outros, são bons demais para o meu gosto. Só que do lado de lá da cordilheira temos Don Melchor, Seña, Viñedo Chadwick, Montes M, Montes Folly, Clos Apalta, Domus Aurea, Casa Real, Almaviva e outros tantos – mesmo linhas intermediárias como a Terrunyo, da Concha y Toro, chegam a um patamar de qualidade bastante elevado no Chile. Para não falar dos brancos, como o ótimo Sol de Sol (chardonnay), para mim o melhor produto dessa uva na América do Sul.

E para você, qual o lado preferido da Cordilheira dos Andes?

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Soy loco por ti, Argentina


Já faz tempo que o renomado crítico americano Robert Parker, de longe o mais influente do mundo, trabalha com uma equipe de colaboradores fixos. Também, pudera. Como um único ser humano conseguiria analisar e dar notas a milhares e milhares de vinhos provenientes de todas as principais áreas vinícolas do globo? Não diria “haja fígado”, porque em degustações profissionais não se ingere a bebida, mas “haja nariz” e “haja língua”. Por isso, Parker concentra-se em algumas regiões de sua preferência, como Bordeaux, Rhône e Califórnia. O resto ele terceiriza. Muita gente não sabe, mas Parker nunca deu uma cheirada sequer em diversos rótulos da Borgonha, do Piemonte ou de Portugal, por exemplo, que as importadoras ostentam em seus catálogos com indicações como “RP 92” ou “RP 87”, seguindo a tradicional escala de 100 pontos.

E foi assim que os vinhos da América do Sul acabaram entregues ao julgamento de Jay Miller, o sujeito com cara de maluco-bonachão da foto aí de cima (por sinal, Miller é PhD em psicologia). É ele quem dá as notas e faz os comentários para as garrafas do Chile e da Argentina que são analisadas na Wine Advocate, a publicação de Parker. Pelo que Miller tem escrito, imagino que não tardará em ganhar uma estátua em Mendoza. O crítico tem sido uma mãe para nuestros hermanos. Na última bateria de degustações, ele disparou uma saraivada de notas altíssimas como nunca se viu por aqui: choveu 96 pontos para vários rótulos e um punhado foi agraciado com 98 pontos.

Para ter uma idéia do que isso significa, o mitológico Château Margaux, um dos ícones máximos da França, só recebeu nota igual ou superior a 98 em sete safras (2005, 2003, 2000, 1996, 1990, 1953, 1928) dentre 49 analisadas por Robert Parker. Eis que a argentina Viña Cobos, que começou a engarrafar seus vinhos em 1999 – é um bebê de fraldas em termos de vinicultura --, já tem três rótulos com essa pontuação que é usada para produtos que flertam com a perfeição. A também novata Achaval-Ferrer, fundada há dez anos, ganhou de Miller um 98 pontos (para o Finca Altamira 2004), um 97 pontos e um 96 pontos. E Nicolas Catena, patriarca da vinicultura de qualidade em Mendoza, mas também um novato em termos mundiais, levou dois 98 pontos.

Não quero desmerecer a notável evolução dos vinhos argentinos, mas vamos devagar. As três vinícolas mencionadas acima são mesmo excelentes e possuem, todas elas, rótulos de respeito. Contudo, acho que as notas estão infladas. Basta comparar as resenhas dos rótulos de Mendoza com as de regiões bem mais tradicionais e sofisticadas, como Borgonha e Piemonte, para ficar claro que Miller está generoso demais. Um detalhe que me deixou especialmente cético é a longevidade que o crítico estima para os rótulos argentinos. A recomendação é beber o Nicolas Catena Zapa 2004 até – pasmem – 2058! Uau... poucos franceses chegam a 50 anos. Do Achaval-Ferrer, ele diz que “está confiante que vai evoluir da mesma maneira que um Bordeaux premier grand cru”. Confiante baseado em quê? Para os Cobos que estão no mercado, Miller foi um pouquinho mais moderado: estarão bons até 2030.

Acho temerário fazer essas afirmações por três motivos. Primeiro por não haver histórico de evolução de vinhos premium na Argentina, pois a vinicultura de ponta tem cerca de 15 anos no país. Segundo porque tampouco há histórico que comprove uma evolução tão longa de vinhos de Malbec, casta que está presente, sozinha ou em corte, em todos esses rótulos. E, três, porque o que se viu de evolução dos vinhos argentinos e chilenos feitos de forma “moderna”, com técnicas como a microoxigenação, até agora não chega a entusiasmar.

Talvez eu esteja errado e Miller seja um visionário. Temos que esperar alguns anos para ter certeza. Mas minha interpretação é que os produtos da Argentina são muito concentrados, seguindo um estilo que agrada a “escola Parker”, que preza a força sobre a elegância. Por isso entusiasmam tanto quem reza por essa cartilha. Por isso também o Chile, embora tenha ganhado altas notas de Miller, não teve nenhum vinho que chegasse aos 98 pontos – os rótulos chilenos são, na média, mais elegantes do que os argentinos.

Acho que a vinicultura da Argentina evoluiu muito e pode vir a figurar entre as melhores do mundo. O que falta para isso é um senso maior de leveza, de sutileza. Esse movimento em favor da elegância já começou em Mendoza, mas ainda está longe de se completar. Além disso, os grandes franceses, italianos, alemães (brancos) e espanhóis têm um toque adicional de complexidade -- definida como riqueza e diversidade de aromas e sabores não-convencionais -- e uma capacidade de envelhecer que o Novo Mundo ainda precisa provar que algum dia conseguirá alcançar.

Para alguns críticos, infelizmente, o entusiasmo de sentir uma bomba de frutas em compota na taça é tão grande que nada mais importa.