terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

O advogado no banco dos réus


Vou mudar o disco. Prometo. Mas antes disso, tocarei uma vez mais o hit Robert Parker aqui no blog. Ele é tema recorrente para qualquer um que escreva regularmente sobre vinhos, de modo que no futuro inevitavelmente voltará à pauta. Contudo, garanto que darei longas férias a Mr. Parker -- até porque há muitas outras coisas interessantes que quero abordar neste espaço. Só gostaria de deixar clara minha opinião sobre ele, porque o que escrevi nos últimos textos parece ter dado a impressão em alguns leitores de que sou contra o famoso crítico americano. Então vamos esclarecer de uma vez por todas o que penso dele.

Primeiro: acho o Parker um grande crítico e considero sua contribuição e seu legado para essa indústria excepcional. Ele abriu caminho para que o trabalho de analisar vinhos seja visto com seriedade e executado seguindo uma metodologia mais consistente. Embora praticamente tudo o que ele faz já existisse antes, essas coisas eram restritas a um mundinho fechado. Com Parker, o especialista em vinhos passou a ser útil e acessível ao consumidor comum. Ele também desbancou famosas vinícolas européias que há muito sobreviviam da fama e da falta de informação, mas que na realidade estavam elaborando produtos medíocres. E acertou em cheio ao recusar publicidade e se negar a degustar qualquer garrafa que seja enviada como presente de vinícolas. Se eu já recebo alguns brindes por aqui, imagino que deve ter fila de caminhão maior do que nos portos brasileiros em frente a sua casa para entregar mimos dos produtores. Parker aceita e bebe, mas não dá nota. Só pontua o que ele mesmo comprou.

Minha principal ressalva a ele diz respeito a algumas avaliações com as quais, humildemente e cá de baixo, discordo. Já tomei produtos com altíssimas pontuações de Parker, sobretudo da Argentina, Austrália, Estados Unidos e Espanha que considerei vinhos exagerados, pesados, sem complexidade e indignos de tantos adjetivos elogiosos. Vinhos de certa forma monótonos, unidimensionais, nada intrigantes e cansativos de beber em grande quantidade. Que eu pense assim não quer dizer nada. É problema meu. Só que alguns grandes especialistas, como Steven Spurrier, da conceituada revista inglesa Decanter, pensam igual a mim. Ou eu igual a eles, para ser mais exato. Essas bolas fora do Parker, no entanto, são exceções. Adoro muitos rótulos desses quatro países e concordo com a maioria das avaliações de Parker ou de seu time de colaboradores para vinhos originários deles ou de quaisquer outros lugares. Mas que às vezes Parker decepciona, decepciona. Pelo menos para mim.

É meio duro de engolir que a Wine Advocate, sua publicação, confira maior nota para um Cobos, da Argentina, do que a um Château Cheval Blanc, de Bordeaux, ou mesmo Romanée-Conti, da Borgonha. O Cobos é bom, é melhor mesmo que muitos franceses consagrados, mas para mim não chega aos pés dos grandes da França – e para não me acusarem de “eurocêntrico”, nem ao mesmo nível dos top da Califórnia, que são espetaculares. Uma coisa é tirar a máscara de vinícolas famosas que só fazem porcaria, o que é louvável. Outra é sair distribuindo 98 pontos por aí quando os melhores vinhos da Europa só conseguem tal nota em safras excelentes. Tenha dó.

Se é assim, por que Parker não substitui o gigantesco estoque de sua adega particular, que ele mesmo admite que é dominada por franceses, por uns malbecões? Até me candidato a dar uma mão. Se quiser trocar comigo, a gente faz negócio. Meio contraditório isso, não? É algo como "você tome o que eu digo, mas eu tomo só francês mesmo porque não sou bobo."

Depois, acho que existem alguns problemas que derivam da enorme influência de Parker, mas que a rigor não são culpa dele. São muito mais culpa das vinícolas e dos importadores e distribuidores de vinhos. Creio que nos últimos dez ou 15 anos emergiu sim uma onda de tentar fazer vinhos com muita fruta madura, concentração e madeira, porque produtos com esse estilo tendem a ganhar notas maiores não só do Parker, como da Wine Spectator e outras fontes de referência. E aí pode acontecer de uma vinícola que fazia vinhos medíocres tomar consciência, investir em tecnologia e melhorar, o que é ótimo. Mas também acontece de produtores que seguiam um estilo próprio e interessante, que tinham uma assinatura, jogarem isso fora para seguir a moda. É culpa do Parker? Não exatamente. A vinícola fez o que quis.

Outra: essa tendência de os consumidores só comprarem vinho pelas notas. “Ah, comprei uma garrafa que tem 93 pontos do Parker”. Ok, a nota tem lá sua utilidade, é um recurso que acho válido, mas um vinho é muito mais do que dígitos. Ater-se aos pontos leva a uma simplificação meio empobrecedora de um produto que é culturalmente tão rico e que mesmo em termos de qualidade é sujeito a muitas variáveis. Se for para comer com um pato assado, por exemplo, prefiro um Borgonha – não importa se tem 87 RP, 85 RP ou sei lá quanto – do que um Syrah australiano de 93 pontos. De novo, não é culpa de Parker que as pessoas utilizem dessa forma o material que ele produz.

Encurtando: é possível olhar a taça meio cheia ou meio vazia. Parker trouxe muitas coisas positivas para o mundo do vinho, mas tem seus pecados e seus efeitos colaterais. Fazendo as contas, acho que o saldo dele está no azul, com folga. Desde o documentário Mondovino, nunca vi um crítico de qualquer assunto ser tão julgado como Parker tem sido. Esse historiador e advogado de Baltimore (essas são suas formações acadêmicas) não sai do banco dos réus. E tome pedrada. Uma ou outra ele talvez até mereça, mas tem havido uma malhação exagerada e injusta.

Parker é meu crítico preferido? Não. Prefiro a Jancis Robinson e Steven Spurrier. Prefiro Eric Asimov. Ou Hugh Johnson. Minha lista é grandinha. Mas nenhum deles tem a mesma importância ou a mesma influência, é preciso reconhecer. Que bom que existe um Parker. Gosto de seu trabalho. Sou a favor do Parker na maioria das vezes. Só não preciso concordar com tudo o que ele diz, nem achar que ele acerta sempre. Alguém acerta?

PS.: Encontrei no site do Parker a transcrição de uma entrevista que o próprio concedeu em 2005. Para a turma que adora o Parker e ao mesmo tempo critica quem é “eurocêntrico”, transcrevo essa resposta do crítico:

“Virtualmente, todo o vinho que bebo por prazer é francês e minha adega reflete isso. Bordeaux, Vale do Rhône, Borgonha (particularmente os brancos), Champagne e, claro, os brancos da Alsácia dominam minha coleção. Eu também tenho um fraco pelos grandes Barolos e Barbarescos do norte da Itália e no Novo Mundo aprecio a riqueza dos melhores vinhos da Califórnia. Mas em grande medida me considero um francófilo e meus gostos vão na direção da cozinha francesa e vinhos franceses.”

E assim ficamos combinados que o clube dos eurocêntricos, do qual este humilde blogueiro faz parte, tem o prazer de considerar Robert Parker como presidente honorário.