terça-feira, 23 de outubro de 2007

Outono na taça


Bastou despejar o líquido na taça e ficou evidente que o verão estava chegando ao seu término para o Glen Carlou Grand Classic 2002, um belo sul-africano à base de Cabernet Sauvignon e Merlot. Este é, para mim, o ápice na vida de muitos vinhos: o momento em que flagrantemente a juventude começa a ser substituída pela maturidade, mas nem aquela foi-se por completo, nem esta instalou-se definitivamente. Há traços das duas fases coexistindo. É o outono do vinho.


Cair na comparação entre o fermentado de uvas e pessoas é tão fácil quanto secar uma garrafa de um bom Bordeaux. Mas, assim como não resisto a um “chateauzinho”, também não pude fugir à tentação da analogia óbvia. Na juventude, o vinho tem mais força, mais explosão, mais exuberância. Na maturidade, é mais intrigante, mais complexo, mais sereno. Ah, sim: antes que me esqueça, isso vale para os rótulos bons de fato. Como regra, os produtos simples morrem cedo. Tudo o que têm de bom é o frescor; quando perdem isso, perdem tudo. Mas as grandes garrafas passam por fases – e essa é uma das belezas da chamada degustação vertical, em que são provados diferentes anos de um mesmo vinho. Aí fica claro que cada safra é uma história, que cada enólogo que passou pela vinícola deixa sua assinatura, mas também que cada etapa da existência de um vinho tem suas peculiaridades.


Definir o que é melhor resume-se a uma questão de gosto – e gosto cada um tem o seu. Em alguns casos, dá até para generalizar. Na média, os consumidores americanos preferem vinhos novos, até porque não têm o hábito de guardá-los em adegas. Já os ingleses mostram uma queda pela bebida mais evoluída. Faz uns meses, um amigo – vou preservar seu nome – contou que estava numa fase de adorar Bordeaux jovem. E explicou: “é como se deitar com uma virgem à sombra de um laranjal”. Você pode pensar o que quiser da comparação – olha a analogia entre vinhos e pessoas novamente --, mas ela tem lá o seu sentido. Uma garrafa muito jovem possui frescor único, mas certamente ainda não evoluiu tudo o que tinha para evoluir, não desabrochou inteiramente. Claro, tudo tem limite. Por extensão do raciocínio, quem abrir um Château Latour, um Romanée-Conti ou um Château D’Yquem recém-engarrafado é um pedófilo. Deveria ir para a cadeia. São vinhos que melhoram tanto, mas tanto, com a idade que é uma tolice não deixar o tempo operar seus milagres.


Toquei nesse assunto porque recentemente provei uma boa leva de vinhos outonais, todos soberbos em sua maturidade. Três deles -- o Sassicaia 2002, o Bertani Amarone Recioto della Valpolicella 1990 e o Gaja Barolo Sperss 1991 -- estão no último post (abaixo). Os mais recentes foram o Glen Carlou 2002 (disponível na importadora Grand Cru por cerca de 80 reais) e o branco uruguaio Prelúdio 2004 (da Expand, também ao redor de 80 reais). O leitor não deixará de observar a disparidade entre as safras. Essa é mesmo uma das grandes dificuldades de regular o consumo de uma adega: o envelhecimento dos vinhos não segue uma ordem cronológica exata. Há garrafas de 1990 que estão novas e há garrafas de 2004 que já são respeitáveis senhoras. Como saber a hora certa de abrir? Só lendo, ouvindo indicação de quem entende ou experimentando.


Como regra geral, vale destacar que as safras ruins tornam os vinhos mais precoces e menos longevos. É isso que explica o fato de o Sassicaia e o Glen Carlou citados no parágrafo de cima já começarem a apresentar os primeiro sinais de declínio. O ano de 2002 foi péssimo em várias partes da Europa, incluindo Toscana, Piemonte, Bordeaux, Rhône e boa parte de Portugal e Espanha. Foi ruim também na África do Sul. O Glen Carlou é um vinho muito agradável, elegante, com certa complexidade, mas nota-se que o longo estágio de 24 meses em carvalho foi um pouco demais para a modesta estrutura de fruta que a safra entregou. A madeira às vezes fica em primeiro plano, dominando o palato, o que não deve ocorrer jamais.


Já o Preludio 2004 está uma delícia para quem gosta de vinhos brancos evoluídos, como eu. Tem aromas de melão supermaduro, mel, curau de milho, compondo uma mistura exótica e muito sedutora. Mas note que não é todo o branco que se presta para a evolução. A maioria dos sauvignon blanc no Novo Mundo, por exemplo, fica tanto melhor quanto mais novo, pois seu valor está no frescor e na acidez. Note também que a evolução dos brancos costuma ser mais rápida. Uma garrafa de 2004 seria considerada jovem para quase qualquer tinto razoável. Mas esse Prelúdio branco (existe o Prelúdio tinto também) já está se despedindo da vida – mais um ano e tchau. Por isso, é preciso ter muito cuidado ao comprar brancos. Na dúvida, sobretudo para as garrafas relativamente baratas, abaixo de 50 reais, prefira as safras mais recentes. Eu só compraria um chardonnay argentino ou chileno dessa faixa de preço de 2005 para frente.


Outro vinho incrível que bebi recentemente foi o Château Lanessan 2000, um Bordeaux de um produtor bom numa safra excelente. Também se percebia que não era mais uma criança. Mas Bordeaux é Bordeaux, e ali a maturidade vem bem devagarinho. Vinhaço.


Para fechar: um leitor perguntou como se sabe quando um vinho está evoluído – ou maduro, se preferir. É fácil. Primeiro, pela cor: os tintos perdem o rubi-vivo ou violeta e ganham tonalidades de tijolo; os brancos deixam de ser quase transparentes e vão ficando amarelo mais escuro. No nariz e na boca, percebe-se toques de oxidação (principalmente nos brancos). Nota-se também, sobretudo nos tintos, a perda de aromas fortes de frutas e o aparecimento de cheiros que remetem a terra molhada, bosque com folhas úmidas caídas no chão, cogumelos. Por isso a analogia com o outono também é boa. Para muitos connaisseurs, essa é a estação mais aguardada – ao menos dentro da taça.

5 comentários:

Anônimo disse...

Como todo enófilo apaixonado pelo tema cá estou eu outra vez ao pé do mestre. Recentemente, experimentei um bom vinho alemão Heilbronner Stiftsberg - QmP Riesling Spätlese Trocken 2003. À primeira impressão, logo ao abrir a garrafa, me pareceu um pouco desagradável. Logo após alguns minutos, abriu-se em muitos aromas mais interessantes. Esse tipo de vinho de colheita tardia se beneficia com a decantação?

Unknown disse...

Ricardo,
Aproveitando os comentários do colega Alcides Junior, gostaria de saber quando e como decantar um vinho.
A respeito do Post, recentemente participei de uma degustação de vinhos italianos (Chianti) e foi possível, pela primeira vez, observar as diferenças entre as safras disponibilizadas. Como vc pode observar, aos poucos começo a compreender melhor as particularidades deste mundo mágico.
Abraços.

Eduardo Vieira disse...

Perfeito seu comentário, Ricardo. Eu particularmente adoro os vinhos em seu outuno. Eles ficam mais elegantes, complexos e desafiadores. Uma vez provamos uma garrafa do mítico Château Cheval Blanc 2004. Foi um infanticídio! Não tem jeito: quando o assunto é abrir uma garrafa de um bom vinho, é preciso conter a ansiedade e esperar pelo melhor momento. É duro, mas costuma ser recompensador... Aproveitando a oportunidade, parabéns pelo blog na casa nova. Está mais bonito e melhor do que nunca.

Anônimo disse...

Você tem razão Ricardo, vinhos com "estrada" mostram muito bem seu caráter, sua elegância. Os vinhos do velho mundo em geral, mas especialmente os franceses em particular, confirmam isso. Recentemente tomei um Bordeaux maravilhoso, um simples petit chatêau, da safra 1998. Estava maravilhoso, no auge, mas poderia ser guardado por um par de anos ainda.

Ricardo Cesar disse...

Alcides e Bruno, obrigado pelas mensagens. Olha, muitos vinhos se beneficiam de decantação, inclusive brancos e de sobremesa. Na dúvida, pode decantar pelo menos meia horinha que mal não fará. Em geral, a decantação é mais indicada para vinhos muito encorpados e jovens, que estão "fechados". Nos exemplares mais concentrados, recomenda-se duas, três, quatro horas de decantação -- ou mais. Na maioria dos casos, porém, cerca de uma hora está de bom tamanho. Decantar também é útil para separar a borra (aquele sedimento que deposita no fundo da garrafa) dos produtos com mais idade. Só que nesse caso recomendo um certo cuidado, pois a decantação pode ser uma injeção de oxigênio meio violenta para vinhos muito, muito velhos. Aí, por segurança, é melhor acompanhar a evolução do líquido na taça. No futuro farei um post sobre decantação. Por ora, espero ter ajudado. Abraços.