terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Ainda falta chão


É verdade que a qualidade média do trabalho com vinhos nos restaurantes subiu consideravelmente nos últimos anos. Melhoraram as cartas, as taças, o conhecimento dos garçons e, pasmem, até os preços. Feito o devido registro, vamos ao lado ruim da história: muita coisa evoluiu, mas partindo de uma base fraca. Se hoje estamos melhores, ainda não estamos bem. Falta chão, e como falta, para que beber dignamente fora de casa, em se tratando de vinhos, seja algo corriqueiro na cena gastronômica paulista, carioca e de outras capitais. Do resto do Brasil, então, nem se fala.


Tive a perfeita medida disso há cerca de duas semanas, quando fui jantar no AK Delicatessen, cujo nome vem das iniciais da jovem chef Andrea Kaufmann. É um bistrô muito interessante no bairro paulistano de Higienópolis, que serve comida internacional com sotaque judaico. E que comida: criativa, executada com perfeição, muito saborosa e ainda por cima bem servida -- esse negócio de ir a restaurante para passar fome não é comigo. Uma culinária contemporânea sem ser afetada ou metida a besta. Bom desde os pãezinhos de entrada (tenho a tese de que é possível adivinhar a qualidade do restaurante só pelos pães; quando esse começo é ruim – pão frio, pouca variedade etc. – é porque o estabelecimento não presta atenção aos detalhes, o que vai afetar todo o resto da experiência) até a sobremesa. Pedi um medalhão gratinado com queijo brie. Delícia. O fato é que o AK estava muito bom. Estava. Até chegar o momento do vinho.


A carta é pequena, mas esse não é o principal problema. Não sou contra cartas relativamente enxutas, desde que bem montadas. Para isso, basta que traga opções em diferentes faixas de preços e escolhas inteligentes, que dialoguem com o menu da casa e, se possível, surpreendam. Com uma dúzia de rótulos já é possível fazer isso. O problema de fato começava no preço. Pedimos um Passo Doble, um vinho elaborado em Mendoza, na Argentina, pelo consagrado produtor italiano Masi, um dos papas do Vêneto. Um inusitado corte das uvas corvina (usada no Amarone) e malbec. Trata-se de uma opção bem sacada numa faixa de preço baixa. Só que esse vinho custa 37 reais na importadora, a Mistral, e no AK estava por 90 reais. Considerando que todo restaurante consegue de 15% a 20% de desconto sobre o preço do catálogo, conclui-se que o bistrô pratica uma margem de exatos 200% sobre essa garrafa.

Sinceramente, acho que o amante de vinho bem informado não pode mais aceitar esse tipo de coisa. Margens extorsivas revelam uma mentalidade ultrapassada, resquício da era pós-abertura de mercado, em que a importação de vinhos era limitada e o conhecimento dos consumidores quase nulo. É justo que o restaurante tenha seu lucro. Afinal, beber vinho num estabelecimento charmoso e de boa comida não é igual tomar em casa. É justo que cobre pelo serviço. É justo que cobre uma taxa de rolha também, se o cliente quiser trazer sua garrafa de casa. Mas triplicar o preço não é justo nem razoável. Para quem conhece o valor do produto, é impossível não se sentir meio otário.


O grand finale, porém, veio quando pedimos vinho de sobremesa em taça. Primeiro, deixe-me louvar o fato de o AK não apenas ter essa opção, que todo restaurante razoável deveria oferecer, como ainda por cima contar com alguma variedade. É possível escolher entre um vinho de sobremesa chileno, um sauternes e um tokaj simples. Muito bem. Só que quando chegou a taça... que vexame. Era uma tacinha minúscula, de três goles, apropriada para um licor ou grapa, mas nunca para um vinho. Numa cantina italiana simples e tradicional, dessas que São Paulo tem às pencas, eu perdoaria um erro desses tranquilamente. Ninguém entra numa cantinona do Bixiga esperando sofisticação, mas sim comida saborosa, honesta, farta, barata e sem frescuras. Num restaurante que se propõe moderninho – e que está longe de ser barato -- como o AK, contudo, não dá para engolir esse tipo de coisa.

Peguei o AK para Cristo, como dizem, porque achei esse bistrô emblemático da atual fase de transição da cena gastronômica paulista. O AK acerta por ter algumas boas opções na carta e taças apropriadas para tintos. Mas escorrega legal nos preços praticados e na taça dos vinhos de sobremesa. Tem um pé no atual e outro no atraso. Só para colocar um contraste neste texto, fui ontem novamente ao “Vino!” – mais do que um wine bar, é um wine restaurant. Ali é possível escolher entre ótimas opções de rótulos com preços iguais aos das importadoras e tomar à mesa. A comida é boa, não excelente (nesse quesito fica abaixo do AK, por exemplo). Mas o vinho, para quem gosta, faz a festa. Tomei o Wallace Shiraz-Grenache 2005, do excelente produtor Ben Glaetzer, uma das estrelas ascendentes da Austrália. Esse cara faz coisas sérias. O Wallace é um produto moderno, muito bem feito, daqueles que trazem a potência que se espera dos rótulos australianos sem abrir mão de uma certa elegância. Tem 93 pontos do crítico Robert Parker, e paguei no Vino! exatos 95 reais, o mesmíssimo preço pelo qual é vendido na importadora Grand Cru.

O Vino! é um caso à parte, porque, como o próprio nome evidencia, toda sua proposta está montada sobre essa bebida. Mas não é preciso chegar a tanto. Veja o exemplo das boas casas de carne, sem dúvida os estabelecimentos que mais avançaram no tratamento dispensado aos vinhos em São Paulo. Rubaiyat, Varanda Grill, Fogo de Chão, Bassi e vários outros contam com adegas climatizadas, cartas amplas e preços mais do que honestos, bem próximos aos praticados pelas importadoras. Esse gênero de restaurante vem elevando o patamar de tratamento aos vinhos. Que isso se espalhe para os italianos, franceses, bistrôs, árabes...

10 comentários:

Anônimo disse...

Aqui em Porto Alegre, na cidade que moro é bastante complicado comer bem e ao mesmo tempo tomar bons vinhos, alguns restaurantes possuem parcerias com importadores e lojas especializadas, o que possibilita ao cliente ter acesso a bons vinhos por meros 15 % ou 20 % o a mais do preço praticado na importadora, poderia citar como exemplo o italiano Puppi Baggio. Outra alternativa muito usada por mim e alguns amigos e apelar para delicatesses que funcionam junto as importadoras, aqui em Porto Alegre por exemplo a loja da Expand possui uma queijaria em anexo, duas lojas independentes mas que funcionam muito bem juntas, uma bela opção para um happy hour já que a Expand dispõe de um belo e confortável louge. Mas embora tenhamos essas pequenas facilidades aqui em Porto Alegre, ainda é muito precário e falta muito para o dia em que sair de casa e ir a um restaurante para um belo jantar com um belo vinho como acompanhamento vai ser tarefa fácil.

Anônimo disse...

A pretensão do AK e de vários outros restaurantes está, necessariamente, fadada ao fracasso. Quando o preço praticado se revela exorbitante, peço um suco e nunca mais volto. É o caso do Aguzzo, por exemplo. E do Baretto, no Hotel Fasano.

Unknown disse...

Fala Ricardo!!!!
Estive no interior do RS nas últimas semanas (Serra Gaúcha e Vale dos Vinhedos) e pasmem, acontece a mesma coisa. Alguns bons rótulos de empresas nacionais conhecidas chegam a ser 30% mais caro que em alguns supermercados aqui de Brasília, os importados... não dá para comentar. Perguntei a um amigo que mora lá e ele sem pestanejar respodeu!!!..Isso é preço para turista.... E por aí vai... Essa mentalidade está praticamente no país inteiro.

Anônimo disse...

Marcel, eu infelizmente conheço pouco das opções de gastronomia de Porto Alegre. Estive na cidade apenas três vezes na minha vida, todas rapidamente. Mas sei que há ótimos restaurantes por aí e muita, mas muita gente apaixonada por vinhos. Isso que você falou, de estabelecimentos que trabalham em parceria com impçortadoras, é uma ótima saída para os restaurantes que querem usar o vinho como atrativo. Talvez eles não ganhem muito em cada garrafa, mas vendem muitas unidades e conseguem fidelizar o públicos que gosta de vinhos. Tenho certeza que vale a pena do ponto de vista de estratégia de negócios. O comentário do leitor Bruno, no entanto, mostra como ainda falta esse tipo de mentalidade até mesmo entre as vinícolas e numa região produtora como a Serra Gaucha. Lamentável. E concordo com o José quando ele diz que se o preço é exorbitante é melhor pedir um suco e nunca mais voltar. É isso aí. Só queria deixar claro aqui que o AK não é um estabelecimento "fadado ao fracasso" -- não necessariamente. O bistrô é ótimo em muitos aspectos. Se começar a trabalhar direito com vinhos, vai ficar excelente.

Anônimo disse...

Tem uma outra opcao muito melhor para restaurantes. Reduzir e dificultar ao maximo a venda de bebidas alcolicas nos restaurantes.
Na Australia, por exemplo, 65% dos restaurantes nao podem vender bebidas alcolicas. Resultado: B.Y.O. (traga voce mesmo) na maioria das vezes nao se cobra nem rolha, e ainda, como muitos dao preferencia ao BYO, ate mesmo os restaurantes que tem licensa tambem permitem BYO. Simples, basta um governo que tenha culhoes para defender o consumidor.

José Luiz disse...

Ricardo,

Em momento algum pretendi sugerir que o AK - ou mesmo o Baretto - estivessem fadados ao fracasso. Ao contrário, o que está fadado ao fracasso é o política destes restaurantes com relação aos vinhos. Cedo ou tarde todos terão que se adaptar. E reduzir as margens.

Parabéns pelas matérias, sempre atuais e interessantes.

Abraços,

José Luiz

Ricardo Cesar disse...

José Luiz, perfeito. Esta política de preços absurdos para vinhos está mesmo fadada ao fracasso. E espero que o fracasso venha logo, para que o consumidor consiga beber bem nos restaurantes sem gastar rios de dinheiro. É isso aí! Obrigado pela participação e pelos comentários pertinentes. É esse diálogo que torna um blog interessante e rico.
Abraços,
Ricardo

Anônimo disse...

Bernarde, é licença e nao licensa.

Luiz Horta disse...

minha experiência no ak foi também decepcionante, um alamos chardonnay que chegou tão quente ao baldinho que foi bebido morno até quase o fim da garrafa. mas o restaurante é bom, os vareniques de batata doce com molho de haddock uma boa invenção. abraço, L

Anônimo disse...

Il semble que vous soyez un expert dans ce domaine, vos remarques sont tres interessantes, merci.

- Daniel