quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Simplicidade



Há pouco, quando eu ainda estava na redação da revista Exame, um grupo de colegas combinava de dar uma esticadinha num bar após o expediente. Ao me ver por ali, um deles convidou: “Vamos lá tomar uma cerveja?”. Ao que outro emendou: “Ah, então temos que pensar em um lugar de melhor nível para nosso happy hour. Um sommelier não pode ir a um boteco”. Era uma brincadeira, porque quem me conhece sabe que adoro um botequim, um churrasco, uma cerveja na praia com os amigos e todas essas coisas simples que são tão boas, principalmente se a companhia é boa também. Rimos da tirada e lá fomos nós para um barzinho tomar chope e comer porções de fritura – e viva a “baixa gastronomia”, ô maravilha!


Mas a frase em questão, mesmo nesse caso sendo apenas um sarro entre colegas, revela qual o estereótipo que as pessoas têm sobre o vinho: um produto elitista. Não deveria ser assim. Nas regiões produtoras tradicionais da França, Itália, Espanha e Portugal, por exemplo, essa bebida sempre foi e continua sendo popular. Todos consomem, como por aqui qualquer bom brasileiro toma sua cervejinha. Em muitos lugares, o vinho é considerado um alimento – é indispensável nas refeições, e tanto à mesa do rico quanto à mesa do pobre.


Tampouco existe no mais antigo e caro de nossa tradição cristão ocidental algo que sugira que essa bebida deveria ser um produto das elites. Bem ao contrário. No Novo Testamento, na ceia em que Cristo despediu-se de seus apóstolos, ele repartiu o pão e serviu o vinho em sua memória. Pão e vinho eram o que de mais simples e despretensioso poderia haver. Um ritual que seus seguidores, mesmo os mais humildes, poderiam repetir. Na passagem das bodas de Caná, o primeiro milagre de Cristo foi transformar água em vinho para que todos – não alguns escolhidos – continuassem bebendo e festejando.


Então de onde vem esse conceito elitista? Talvez porque os negros e índios, dois dos pilares básicos da brasilidade, nunca tiveram no vinho um elemento de sua cultura. O hábito de consumo sempre se restringiu aos descendentes de europeu – exatamente a antiga elite do país. Por aqui o vinho era importado, caro, e restrito a poucos. Talvez essa seja a razão histórica, suponho. Mas há também uma razão contemporânea. A atual moda enófila no Brasil veio acompanhada de toda uma babaquice empolada que não contribui em nada para aproximar as pessoas dessa bebida. Um linguajar supostamente técnico, comparações esdrúxulas com aromas de outro planeta, rituais esotéricos que os não-iniciados sentem que só aprenderiam com décadas de estudo. E, bem, não é nada disso.


Há de fato um bocado de coisas a aprender sobre o mundo dos vinhos. Só que as pessoas que fazem questão de transformar essa bebida em algo esnobe tornam tudo mais complicado. Não é para ser difícil, é para ser um aprendizado gostoso. Se não, qual o sentido disso? Um exemplo do que estou falando aqui são as clássicas analogias dos aromas com frutas, flores, terra, madeira, cravo, resina, couro molhado etc. etc. etc. Esse é um recurso que surgiu na Europa para simplificar – veja bem, simplificar – a explicação de como é um determinado rótulo para alguém que nunca o experimentou. Daí esse artifício, que acho completamente válido. Por isso um vinho tem aromas de cassis, ou de frutas vermelhas, ou de frutas negras, ou de cedro, ou de trufa. No Brasil, essa técnica chegou distorcida. Usa-se a analogia com frutas e alimentos que não fazem parte do dia-a-dia das pessoas, por isso não explicam nada. Dá a impressão de que a lista de aromas contidos numa taça é uma caixa preta que só os especialistas têm a chave para abrir.


Minha idéia original era fazer um post com dicas de rótulos para a ceia de Natal e de Ano Novo. Mas reconsiderei. Desta vez, ao invés de indicar qual a garrafa certa para essa ocasião, preferi sugerir o espírito certo. Aproveite o vinho com simplicidade e alegria. No fundo, o vinho é só isso: uma bebida para ser compartilhada com as pessoas que você gosta. Assim qualquer garrafa fica grandiosa.


Para fechar, copio aqui um antigo post que fiz. Acho que explica bem o que quero dizer.


A todos, um feliz Natal.

...


O espírito da coisa


Tomei um dos melhores vinhos do mundo. Não, não me refiro ao Château Cheval Blanc, um dos premier grand cru classé de Bordeaux, ou ao lendário Barca Velha, de Portugal -- dois ícones que degustei recentemente na Expovinis. Falo de outra coisa.


No último fim de semana tive o prazer de conhecer a cantina Roberto Tatini, escondida na cidadezinha de Sapucaí Mirim, no Sul de Minas Gerais, quase divisa com São Paulo. Fica a um pulo de Campos do Jordão ou de Santo Antônio dos Pinhais, destinos automáticos dos turistas paulistas tão logo os termômetros acusam alguns graus a menos. Mas pouca gente que visita a região da Serra da Mantiqueira espicha o passeio até lá, porque Sapucaí Mirim, coitada, não tem sombra do charme -- muito menos da infra-estrutura -- de suas vizinhas mais requintadas.

Tampouco é o primeiro lugar que vem à mente quando se pensa em uma boa comida italiana. Ou em boa comida de qualquer tipo, salvo, vá lá, caipira. Ainda mais que a cantina não está no centro de Sapucaí Mirim. Está na periferia. Enquanto dirigia por ruas de terra cercadas de pastos ou de esparsas casas em construção, comecei a desconfiar que a indicação que tive (acho que é só assim, no boca a boca, que Tatini consegue sua clientela) para ir lá era uma roubada. Não era. Mesmo chegando às 15h30 e sem reserva (o que não é recomendado), eu e minha esposa, Raquel, fomos recebidos com um sorriso cordial por Roberto Tatini, sua esposa e as duas filhas pequenas. Há oito anos Roberto largou sua cantina de São Paulo e foi viver ali. Largou São Paulo, bem entendido. A cantina, felizmente, foi com ele. Visitamos a cozinha. Tudo simples, velho, bagunçado -- e adorável. Panelas empilhadas por lavar. Um pão recém-assado perfumava o ambiente. Já estávamos prevenidos de como a coisa funciona. Não há cardápio. Roberto serve o que estiver cozinhando no dia e cobra 50 reais por pessoa. Pedi a carta de vinhos. Não havia, ou Roberto não quis trazer. "Tome este, você vai gostar", disse, abrindo uma garrafa de um toscano simplezinho, simplezinho.


Numa degustação, que nota teria aquele vinho? 83 pontos? 85? Não importa. Mas não importa mesmo.Ali, era o melhor que podia haver. O vinho harmonizava, para usar o termo dos sommeliers. Mas não só com os pratos. Harmonizava com a taça de vidro igualmente simples, com a mesa de madeira rústica, com a ampla casa de telha vã e tijolo aparente. Com o cheiro de tempero que vinha da cozinha. Com a vontade de dar uma desligada de e-mail, de celular, da correria e até da pretensa sofisticação que a vida em São Paulo -- ou em qualquer grande cidade -- costuma ter. Veio a comida. Primeiro, o pão feito ali mesmo com um antepasto de pimentão. Mais um instante e aparece Roberto com um punhado de temperos que foi apanhar no quintal. Depois, uma massa verde com queijo mascarpone e presunto cru. Coisa séria. Um talharine à bolonhesa. Um cordeiro, comprado de alguém que cria na região. Tudo bem?, preocupa-se Roberto. Que dizer? Talvez dar uma nota, como os especialistas gostam de fazer com os vinhos. Então lá vai: de zero a dez, nota mil. E o toscaninho escoltando a comida -- comida grandiosa porque simples, honesta. É isso que se espera de uma cantina, suponho. Mas, desculpe o preconceito, é bem mais do que eu esperava de uma cantina naquele quase fim-de-mundo.

Gostamos tanto que voltamos para jantar no dia seguinte com um casal de amigos que encontramos por acaso em Santo Antônio do Pinhal, Alexandre Teixeira e Gabi. Dessa vez levamos os vinhos, porque descobrimos que Roberto não cobra rolha. Não vou entrar em detalhes, mas todos aprovaram a ceia.


Além de indicar um lugar bacana, este post tem, como já deve estar claro, uma moral. O vinho e a comida devem ser entendidos como uma experiência completa. O contexto, o ambiente -- isso conta. Sorte de quem sabe assimilar o espírito de cada ocasião. Não teria gostado daquele toscano se estivesse num restaurante caríssimo de São Paulo. Nem das taças. Mesmo a comida ficaria deslocada. Mas ali, naquele lugar, fazia todo sentido. Há ocasião para o requinte e ocasião para a simplicidade. Note bem: simplicidade. Simples não quer dizer ruim. São coisas bem diferentes. Quem não sabe disso perde. Quem sabe terá um prazer gastronômico que é negado aos esnobes, por mais dinheiro que tenham.


Gastei poucos reais. E tomei um dos melhores vinhos do mundo. Entendeu o espírito da coisa?

6 comentários:

Unknown disse...

Ricardo,
Me lembrei deste post "O espírito da coisa" que vc publicou no antigo blog, quando estive recentemente no Vale dos Vinhedos a procura de novidades. Após visitar imponentes produtores, resolvi aceitar a sugestão de uma amigo e fui até uma vinícula de um pequeno produtor em Bento Gonçalves. Naquele dia, eu me senti o cara mais afortunado do mundo, não pela qualidade do vinho ou pelas instalações (todas muito simples porém limpas e bem cuidadas), mas pelo privilégio de poder sentar com um dos inúmeros filhos de imigrantes e conhecer um pouco da história das parreiras que ali foram plantadas. Para comer, apenas o pão tipo italiano quentinho feito na hora e uma garrafa de vinho desgustada em copos simples. Foi a melhor experiência que já tive em se tratando de vinho neste quase um ano em que entrei para esse mundo de descobertas.
Abraços,
Bruno H. Cunha

Anônimo disse...

Ricardo, que textos lindos. Aprendo muito com o seu blog. Une conhecimento com sensibilidade. Parabéns.

Anônimo disse...

Concordo com quase tudo o que o Ricardo brilhantemente escreveu. Apenas queria complementar dizendo que o ritual que acompanha um bom serviço de vinho visa engrandecer a bebida, a comida e o espírito das pessoas que dele participam. Os esnobes e os babacas sempre existirão (eles tomam cerveja também). O importante é que não achemos que a elegância e a formalidade que são associadas ao vinho sejam execráveis ou até mesmo incovenientes. Voto para que o vinho seja uma bebida de todos e que todos possam também ter seus momentos de elegância e formalidade, além dos bons momentos de descontração e despojamento. Feliz Natal a todos.

Anônimo disse...

Excelentes assertivas. Não devemos confundir nobreza com esnobismo. A nobreza pode ser simples e direta (veja o Por que não te calas ?). E o post ficou maravilhoso. Um belo presente de natal.

Anônimo disse...

Bruno, obrigado pelo comentário. Você entendeu o espírito da coisa: o contexto, a situação, tudo isso conta muito. Como você escreveu, sentar com os produtores e saborear um pão recém-saído do forno com uma taça rústica na fazenda é sublime. Numa degustação profissional em um restaurante caríssimo de São Paulo, talvez o mesmo vinho se saísse mal, é verdade. Mas também é possível que até o melhor rótulo, dezenas de vezes mais caro do que aquele saboreado na fazenda, não traga o mesmo prazer que a experiência completa proporcionou com um vinho rústico e simples no lugar certo, na hora certa, com as pessoas certas. E o Alcides também colocou um ponto muito importante: há certos rituais dos vinhos, especialmente dos grandes vinhos, que devem ser aprendidos e respeitados. É verdade. Não dá para despejar um Cheval Blanc num copo de plástico e tomar como se não fosse nada de mais... é preciso respeito e reverência para certas garrafas. No entanto, é tênue a linha entre o cuidado correto e a pose empolada e esnobe. É preciso saber se é hora de degustar e/ou beber com seriedade ou se é hora de descontração. Quem confunde as bolas vira o tal do "enochato".

Anônimo disse...

Ricardo, bom dia!!

Obrigado pela dica! Estivemos ontem com a família Tatini, comemos a deliciosa comida, bebemos o "melhor vinho do mundo" e de quebra minha filha de 5 anos fez novas amigas na "piscina" de água mineral da cantina.
O lugar e as escolhas da família me fez pensar muito sobre o meu conceito de sucesso.

Vamos voltar muitas vezes e aprender mais com eles.

Alcir Miguel Jr.
alcir@mendesmiguel.com.br