sábado, 28 de junho de 2008

Na Bairrada, como os bairradinos


O simpático porquinho aí do lado é um legítimo leitão da Bairrada a caminho da mesa. Coisa seriíssima. Sempre um animal de seis a oito quilos aproximadamente, temperado pelo interior e preparado inteiro num espeto de madeira (antigamente) ou metal (mais comum hoje em dia). O bicho tem uma carne macia e pra lá de saborosa e sai do fogo recoberto por uma capa pururuca -- como se nota pela cor de bronze -- que levou os convidados da Dão Sul a um estado próximo da comoção. Tirei a foto na cozinha da vinícola Quinta do Encontro, talvez a mais moderna de Portugal. Foi lá mesmo que devoramos esse aí – e mais outro que bem deveria ser um irmão gêmeo, tão igualmente maravilhoso estava em tudo.

Já que a brincadeira é de gente grande, qual vinho escolher para o banquete? Havia opções de sobra. Mas nada escoltou o leitão melhor do que um espumante tinto – tinto mesmo, não rosé – feito da uva Baga, a casta típica da Bairrada. Surpreso? Também fiquei. Logo no começo da refeição, fomos avisados que essa é a combinação clássica da região. Sempre quebrei a cara em todas as vezes que apostei contra harmonizações que foram estabelecidas ao longo de décadas ou séculos e que fazem parte da cultura gastronômica de uma localidade. Mesmo assim, não pude deixar de duvidar novamente. Com vários tintos grandiosos à minha frente, seria um rústico espumante tinto que faria a melhor combinação? Foi.

Sozinho, aquela bebida não é das mais prazerosas. Um espumante pesado, com taninos perceptíveis e bastante ácido. Não serve de aperitivo. Não tem nem sombra do refinamento de um champanhe. Não é, por si, um grande vinho. Mas com o leitão, deu-se a mágica da harmonização perfeita. As bolhas generosas e a acidez viva quebravam a gordura do porco e lavavam a boca, aumentando o apetite e preparando para a próxima garfada e o próximo gole. Os taninos desapareciam com a comida e ajudavam a digeri-la. O leve frutado conferia um toque a mais na receita, sem nunca se sobrepor a ela.

Os vinhos brancos que tínhamos desapareciam com o leitão. Os tintos não iam mal – o melhor deles foi o Encontro 2005, um 100% Baga de alta classe, feito para a adega --, mas atrapalhavam um pouco na percepção da carne, que é delicada, apesar de gordurosa. Com o espumante tudo funcionou. Esse foi talvez o melhor exemplo da sabedoria regional em harmonizações que já pude experimentar. Quem for para lá, não pense duas vezes: na Bairrada, como os bairradinos.

E Portugal é bom mesmo nisso. O casamento de queijo da Serra da Estrela com vinho do Porto é outro tesouro enogastronômico que a Unesco deveria tombar como patrimônio da humanidade. Aí a lógica de harmonização é a mesma da nossa goiabada com queijo branco – o contraste de doce e salgado. Mas o Serra da Estrela merece um texto inteiro para si. Minha visita a um produtor artesanal desse laticínio -- que está, sem dúvida, entre os melhores do mundo -- será o tema do próximo post.

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